Trecho do livro A MORTE DA FÉ

1.A razão no exílio O rapaz sobe em um ônibus que está saindo do terminal.Está de casacão. Debaixo do casacão, leva uma bomba. Seus bolsos estão cheios de pregos, esferas metálicas e veneno para ratos. O ônibus está lotado, rumando para o centro da cidade. O rapaz se senta ao lado de um casal de meia-idade.Vai esperar o ônibus chegar à próxima parada. O casal ao lado troca ideias sobre uma nova geladeira.A mulher já se decidiu por um modelo, mas o marido acha que será muito caro e mostra outro modelo em um folheto aberto no colo dela. A próxima parada já está à vista. As portas do ônibus se abrem. A mulher nota que a geladeira que o marido escolheu não vai caber no espaço debaixo do armário. Novos passageiros já se sentaram nos últimos lugares que restam e já começam a ocupar o corredor. O ônibus está cheio. O rapaz sorri. Ao apertar um botão, ele destrói a si mesmo, o casal ao seu lado e mais vinte pessoas no ônibus. Os pregos, os rolamentos metálicos e o veneno para ratos farão mais vítimas na rua e nos carros ao redor.Tudo aconteceu conforme o planejado. Os pais do rapaz logo ficam sabendo o que lhe aconteceu. Embora entristecidos por terem perdido um filho, sentem um tremendo orgulho pelo seu feito. Eles sabem que o jovem foi para o céu, preparando o caminho para eles,que seguirão mais tarde. Não só isso - ele também mandou suas vítimas para o inferno por toda a eternidade. É uma vitória dupla. Os vizinhos julgam esse acontecimento um grande motivo para comemoração e homenageiam os pais do rapaz com presentes em alimentos e dinheiro. Esses são os fatos. Isso é tudo que sabemos com certeza sobre o rapaz.Será que há alguma outra coisa que podemos deduzir dele com base no seu comportamento? Será que era popular na escola? Era rico ou pobre? Tinha inteligência limitada ou superior? Suas ações não nos dão nenhuma indicação a respeito. Será que tinha formação universitária? Teria ele um futuro brilhante como engenheiro mecânico? Seu comportamento é mudo quanto a questões desse tipo, e a centenas de outras como estas. Por que, então, é tão fácil, tão trivial - quase poderíamos apostar a própria vida,de tão fácil -, deduzir qual é a religião desse jovem? Uma crença é uma alavanca que, uma vez acionada, move quase tudo o mais na vida de uma pessoa.Você é um cientista? É liberal em política? É racista? Todas essas são apenas vários tipos de crenças em ação. Suas crenças definem a sua visão do mundo; elas ditam o seu comportamento; são elas que determinam as suas respostas emocionais para com os outros seres humanos. Se você duvida, imagine como a sua experiência de vida mudaria de repente se você passasse a acreditar em uma das seguintes afirmações: 1.Você só tem mais duas semanas de vida. 2.Você acaba de ganhar na loteria - o prêmio é de 100 milhões de dólares. 3. Seres extraterrestres implantaram um receptor no seu crânio e estão manipulando seus pensamentos. Tudo isso são meras palavras - até que você passe a acreditar nelas. Uma vez que você acredita, elas se tornam parte da própria estrutura da sua mente, definindo seus desejos, medos, expectativas e comportamentos subsequentes. No entanto, parece haver um sério problema com algumas das nossas crenças e convicções mais caras acerca do mundo: elas estão nos levando, inexoravelmente, a matar uns aos outros. Basta um olhar superficial na história humana ou nas páginas de qualquer jornal e já se revela que as ideias que dividem um grupo de seres humanos do outro, e que os unem quando se trata de cometer assassinatos em massa, em geral têm raízes na religião. Ao que parece, se a nossa espécie acabar se erradicando por meio de guerras,não será porque estava "escrito nas estrelas",mas porque estava escrito nos nossos livros. O que nós fazemos nos dias de hoje em relação a palavras como "Deus", "paraíso","pecado"é que vai determinar o nosso futuro. Nossa situação é a seguinte: a maioria das pessoas deste mundo acredita que o Criador do universo escreveu um livro. Por infelicidade, existem muitos livros desse tipo, e cada um alega que só ele,exclusivamente,é infalível. As pessoas tendem a se organizar em facções de acordo com qual dessas afirmações elas aceitam - todas incompatíveis entre si - e não com base no idioma, cor da pele, local de nascimento ou qualquer outro critério tribal. Cada um desses textos trata de instar seus leitores a adotar diversas crenças e práticas, algumas das quais são benignas,muitas outras não. Todos esses textos, porém, concordam perversamente em um ponto fundamental:o "respeito"pelas outras crenças,ou pelas opiniões dos descrentes,não é uma atitude que Deus aprova. Se é verdade que todas as religiões foram afetadas, aqui e ali, pelo espírito ecumênico, o princípio central de cada tradição religiosa é que todas as outras são apenas repositórios de erros; ou,na melhor das hipóteses, são perigosamente incompletas.Assim, a intolerância é intrínseca a todos os credos. Uma vez que a pessoa acredite - realmente acredite - que certas ideias podem levar à felicidade eterna, ou então à antítese disso, ela não pode tolerar a possibilidade de que seus entes queridos possam ser desviados do caminho correto pela sedução dos descrentes. A certeza a respeito da vida futura é simplesmente incompatível com a tolerância nesta vida. Observações desse tipo colocam, porém, um problema imediato para nós, pois hoje em dia criticar a religião de alguém é tabu em todos os cantos da nossa cultura.A esse respeito, tanto liberais como conservadores chegaram a um raro consenso: as crenças religiosas estão, simplesmente, fora do escopo do discurso racional. Criticar as ideias de alguém a respeito de Deus e da existência futura é uma atitude considerada não diplomática, de uma forma que não ocorre quando se critica as ideias de alguém sobre física ou história. E assim é que, quando um terrorista muçulmano suicida destrói sua vida, juntamente com dezenas de inocentes em uma rua de Jerusalém, o papel que a fé religiosa desempenha nas suas ações é invariavelmente minimizado. O que se diz é que seus motivos devem ter sido políticos, econômicos, ou inteiramente pessoais; e que, mesmo excluindo a fé, pessoas desesperadas também fariam coisas terríveis. A religião em si é sempre exonerada, em todo lugar. Contudo, a tecnologia tem sua maneira de criar novos imperativos morais. Nossos avanços técnicos na arte da guerra acabaram por tornar as nossas diferenças religiosas - e, portanto, as nossas crenças religiosas - incompatíveis com a nossa sobrevivência.Não podemos mais ignorar o fato de que bilhões de nossos vizinhos acreditam na metafísica do martírio, ou na verdade literal expressa no livro do Apocalipse, ou em qualquer das outras ideias fantasiosas que há milênios espreitam na mente dos fiéis - já que nossos vizinhos estão agora munidos de armas químicas, biológicas e nucleares. Não há dúvida de que esses novos fatos marcam a fase terminal da nossa credulidade. Palavras como "Deus"e "Alá"devem seguir o mesmo caminho de "Apolo"e "Baal" - do contrário, elas vão destruir o nosso mundo. Alguns minutos percorrendo o cemitério das más ideias sugerem que é possível haver uma revolução conceitual desse tipo. Pense no caso da alquimia: ela fascinou a humanidade por mais de mil anos e, contudo, qualquer pessoa que hoje afirme seriamente ser um alquimista praticante vai se desqualificar para a maioria dos cargos de responsabilidade na nossa sociedade. A religião baseada na fé tem que sofrer o mesmo destino e tornar-se obsoleta. Qual é a alternativa para a religião tal como nós a conhecemos? Pensando bem, essa é uma pergunta errada. A química não foi uma "alternativa" para a alquimia; foi uma troca completa da ignorância, em sua forma mais rococó, pelo conhecimento genuíno. Veremos neste livro que, tal como ocorre com a alquimia, falar de "alternativas" à fé religiosa significa não compreender o ponto principal. É claro que as pessoas de fé se situam em um continuum: algumas encontram consolo e inspiração em uma determinada tradição espiritual, mas estão plenamente comprometidas com a tolerância e a diversidade, enquanto outras estão dispostas a incendiar a terra inteira e reduzi-la a cinzas, se isso puser um fim à heresia. Em outras palavras, existem religiosos moderados e religiosos extremistas, e suas respectivas paixões e projetos não devem ser confundidos. Mas um dos temas centrais deste livro é que os religiosos moderados também são portadores de um terrível dogma: eles imaginam que o caminho para a paz será aplainado quando cada um de nós aprender a respeitar as crenças não justificadas dos demais. Espero demonstrar que o próprio ideal da tolerância religiosa - nascido da ideia de que cada ser humano deve ter liberdade de acreditar no que quiser a respeito de Deus - é uma das principais forças que estão nos levando para o abismo. Temos sido muito lentos para reconhecer até que ponto a fé religiosa perpetua a desumanidade do homem para com o homem. Isso não surpreende, já que muitos de nós continuam acreditando que a fé é um componente essencial da vida humana. Há dois mitos que hoje isentam a fé da crítica racional,e parece que esses mitos estimulam igualmente o extremismo religioso e a moderação religiosa: 1) a maioria de nós acredita que há coisas boas que as pessoas obtêm da fé religiosa (por exemplo, comunidades fortes, comportamento ético, experiência espiritual), coisas que não se obtêm de outra maneira; 2) muitos também acreditam que as coisas terríveis que por vezes são feitas em nome da religião não são produtos da em si, mas das tendências mais baixas da nossa natureza - forças como a ganância,o ódio e o medo -, para os quais as crenças religiosas são o melhor remédio (ou mesmo o único). Tomados em conjunto, parece que esses dois mitos nos deram perfeita imunidade contra as manifestações de sensatez na esfera pública. Muitos moderados religiosos tomaram o caminho aparentemente ético do pluralismo, afirmando que todas as religiões têm igual validade; mas ao fazê-lo eles ignoram as afirmações irremediavelmente sectárias de cada uma quanto a ser dona exclusiva da verdade. Enquanto um cristão acreditar que apenas os seus irmãos batizados serão salvos no Dia do Juízo, ele não pode, de forma alguma,"respeitar"as crenças alheias,pois sabe que as labaredas do inferno foram alimentadas por essas mesmas ideias e estão à espera dos que seguem essas heresias. Os muçulmanos e os judeus assumem, de modo geral, a mesma visão arrogante, e já passaram milênios afirmando com ardor os erros e equívocos das outras religiões. Nem é preciso dizer que todos esses sistemas de crenças rivais são igualmente imunes a provas concretas. E, contudo, intelectuais tão diversos como H.G.Wells, Albert Einstein, Carl Jung, Max Planck, Freeman Dyson e Stephen Jay Gould já declararam que a guerra entre a razão e a fé terminou há muito tempo.Desse ponto de vista,não é necessário haver coerência entre todas as nossas crenças acerca do universo.Alguém pode ser um cristão temente a Deus no domingo e um cientista ativo em seu trabalho na segunda-feira de manhã, sem jamais ter que explicar essa divisão que parece ter se formado na sua cabeça durante a noite. Ele pode, por assim dizer, ser e não ser racional ao mesmo tempo. Como ilustraremos nos primeiros capítulos deste livro, é apenas porque a Igreja foi politicamente refreada no Ocidente que as pessoas podem se dar ao luxo de pensar dessa maneira.Em lugares onde até hoje um intelectual pode ser morto por apedrejamento por duvidar da veracidade do Corão, a noção de Stephen J. Gould de um "acordo amoroso" entre a fé e a razão seria perfeitamente delirante. Não que as preocupações mais profundas dos fiéis, moderados ou extremos, sejam triviais, ou mesmo equivocadas. Não há como negar que a maioria das pessoas tem necessidades emocionais e espirituais que hoje recebem atenção - mesmo que de uma forma oblíqua e a um preço terrível - das religiões principais. E são necessidades que a mera compreensão do nosso mundo, seja científica ou não, jamais poderá satisfazer. Existe, sem dúvida,uma dimensão sagrada na nossa existência, e chegar a um bom entendimento com ela talvez seja o propósito mais elevado da vida humana. Mas veremos que para isso não é preciso ter fé em nenhuma afirmação impossível de se comprovar - tais como "Jesus nasceu de uma virgem" ou "o Corão é a palavra de Deus".