Trecho do livro HISTÓRIAS À BRASILEIRA, VOL. 2

PEDRO MALASARTES E O LAMAÇAL COLOSSAL VOCÊ CONHECE O PEDRO MALASARTES? Se não conhece, pode ir se preparando porque ele pode aparecer aqui a qualquer hora. Ele não esquenta lugar, está sempre indo de um canto para outro. Fica um tempinho trabalhando numa fazenda, sai e vai para outro emprego num sítio, daí a pouco já está numa vila vendendo umas coisas na feira... Quando a gente menos espera, Pedro já está de novo na estrada, a caminho da cidade ou de outra fazenda onde possa ter uma oportunidade melhor. Muda toda hora, sempre em busca de um trabalho mais bem pago, de um patrão que trate bem, de um negócio mais interessante. Por isso, em cada história ele está fazendo alguma coisa diferente. E sempre procurando dar um jeito de se defender, garantir um prato de comida e não ser explorado. Mesmo que, para isso, acabe enganando alguém. Acho que uma das primeiras aventuras de Pedro Malasartes foi quando ele foi tomar conta dos porcos de uma fazenda muito grande, de um fazendeiro muito rico e muito sovina. Quer dizer, no começo Malasartes não tomava conta dos porcos, não. Trabalhava na colheita. Aliás, bem nesse começo ele ainda nem se chamava Malasartes, era só mais um Pedro como tantos outros, que ainda não tinha ficado conhecido por fazer arte nem por pregar peça nos outros. Chegou lá pedindo emprego e foi contratado para colher café. Pedro trabalhou o mês inteiro. De manhãzinha até a noite. No fim desse tempo, quando chegou o dia do pagamento, o patrão deu a ele umas moedinhas. - Só isso, patrão? E o salário que a gente combinou? - Bom, eu tive que descontar sua hospedagem... Se eu for hospedar de graça todo mundo que chega nesta fazenda colossal... - E o senhor chama de hospedagem dormir amontoado com os outros naquele barracão, numa esteira velha, direto no chão duro? - reclamou ele. - Faz até bem para a coluna... Pedro insistiu: - Mas foi uma hospedagem muito cara. Eu tenho pra mim que eu não dormi esse tantão, não... Não adiantou insistir. O desconto estava feito. E o patrão ainda apareceu com outra explicação: - É que tem também o desconto da comida. Se eu fosse dar comida de graça para todo mundo que chega nesta fazenda colossal... - Um descontão desses? Pela comida? Só aquele feijãozinho ralo todo dia? E o senhor queria que eu passasse fome? Trabalhasse sem comer? Saco vazio não fica em pé... - Claro que não quero ver você com fome! Mas comida custa dinheiro - respondeu o patrão. - Tenho que descontar do seu salário o preço do feijão com arroz, do sal, da lingüiça, da lenha que cozinhou a comida, do óleo, do alho e da cebola que a cozinheira usou no refogado, do salário da cozinheira, do sabão que lavou as panelas, do... - Chega, patrão, chega! Não precisa mais falar em tanto desconto. Mas eu tenho pra mim que eu não comi esse tantão, não... Não adiantou discutir. O desconto estava feito. Pedro resolveu que no mês seguinte ia ser diferente. Trabalhou do mesmo jeito, de sol a sol, mas não dormiu no barracão nem comeu com os outros. Com o pouquinho de dinheiro que tinha ganho comprou na venda sua própria esteira e dormia embaixo de uma árvore. Pescava no ribeirão, armava arapuca na mata, e no fim do dia quase sempre tinha alguma coisa para assar numa fogueirinha ao ar livre. Arrumava uma frutinha aqui, outra ali, pegava uma espiga de milho verde num milharal, uma raiz de mandioca numa roça, umas folhas de taioba crescendo ao deus-dará junto do córrego... Quase sempre dava um jeito de não comer com os outros. Dessa vez o patrão ia ver só. Não ia adiantar vir com aquela conversa de fazenda colossal. Mas, na hora do pagamento, não foi muito diferente. O patrão descontou um tantinho pelo aluguel do pedacinho de terra onde ele armava a esteira, outro tantinho pelo uso do rio, e outro tantinho pela espiga de milho, pela raiz de mandioca, pelas folhas de taioba, por tudo o que ele tinha comido. - Chega, patrão, chega! Não precisa mais falar em tanto desconto. Mas eu tenho pra mim que eu não usei esse tantão, não... - reclamou Pedro. - Se é assim, vou-me embora. Não trabalho mais aqui. O patrão coçou a cabeça, olhou para ele e disse: - Só se for no mês que vem. Porque neste mês agora ainda vai ter que trabalhar para mim, para poder acertar nossas contas. - Nossas contas? Como assim? - estranhou Pedro. - É que ainda falta acertar sua conta com o armazém. - Que armazém? - estranhou Pedro de novo. - Uai, aquela vendinha na beira da estrada. Você não sabe que é minha? - E eu lá tenho conta em armazém? - Como não tem? E a esteira que você comprou? - Comprei e paguei, com muita honra! - Pagou a esteira, mas depois comprou também um pedaço de fumo de rolo e uma cachacinha... Ou não lembra que comprou? - Comprei e também paguei, com muita honra! - exclamou Pedro, furioso. - Pagou a primeira... - concordou o patrão. - Mas depois pediu outra, e mais outra, e não tinha mais dinheiro para pagar. Mandou botar na conta. O vendedor anotou tudo. E agora você tem que pagar. Se eu fosse deixar de graça tudo o que todo mundo compra na venda desta fazenda colossal... Pedro protestou: - Eu tenho pra mim que eu não bebi e não fumei esse tantão, não... Com ar de bonzinho, o fazendeiro completou: - Mas pode deixar para pagar uma parte no mês que vem. Pedro saiu dali muito zangado. Não lembrava de ter bebido muitas doses de pinga. Mas até podia ser. Bem que a mãe dele dizia que isso de tomar uma cachacinha é uma desgraceira. De qualquer modo, uma coisa ele estava entendendo: aquilo não ia ter fim nunca. - Esse fazendeiro é um explorador! Vem com essa conversinha mole de fazenda colossal, mas está querendo me tratar feito se eu fosse um escravo. Não me paga e não me deixa ir embora. Ah, mas isso não vai ficar assim. Vou dar um jeito. No dia seguinte, procurou o patrão e se ofereceu para tomar conta dos porcos da fazenda. Esses porcos eram o grande orgulho do fazendeiro. Gordos, bonitos, rendiam um bom dinheiro... Mas comiam muito, fediam muito e bem que davam trabalho. Qualquer reforço para tomar conta deles era sempre bem-vindo. - Tudo bem. Então vá cuidar da lavagem deles. Era duro. Uma espécie de trabalho de lixeiro. Pedro tinha que ir de casa em casa, por toda a fazenda, recolhendo os restos de comida, cascas de frutas, alimentos estragados, todo tipo de sobra, e botando tudo nuns latões enormes e pesados, que cheiravam mal. Depois carregava baldes d'água do ribeirão, misturava tudo, jogava nos cochos e abria a porteira do cercado. Os porcos entravam correndo, derrubando uns aos outros, e se amontoavam para a comilança. No meio de uma sujeirada incrível. Mas Pedro não desanimou. Fez tudo direitinho, no capricho. Quando acabou, perguntou ao patrão: - Agora posso levar os porcos para passear? - Passear? Nunca ouvi falar em porco passeando. Ficou maluco? - Com todo o respeito, senhor, eu sempre ouvi dizer que exercício faz bem aos animais, a carne deles rende mais e fica maciazinha... Dá um preço ótimo na hora de vender. Os olhos do fazendeiro brilharam, e ele perguntou, interessado: - E como é que você vai levar esses porcos para passear? - Ah, patrão, numa fazenda colossal como esta, com toda a certeza não vai faltar um lugar bem especial para seus porquinhos fazerem exercícios. Eu fico tomando conta, como se fosse um pastor, um vaqueiro... O patrão deu risada: - Um porqueiro, você quer dizer. Mas... pode levar. Só tenha cuidado para eles não se soltarem, não invadirem as roças, não darem prejuízo. - Pode deixar, patrão. Já vi um lugar aqui perto que tem uma laminha muito simpática. Acho que eles vão gostar bastante. Isso foi o que Pedro disse. O que ele não disse é que passara a noite carregando água do córrego para jogar num terreno à beira da estrada, que tinha sido capinado e estava pronto para ser plantado. A noite inteira, para lá e para cá. Desse jeito, Pedro tinha preparado um lamaçal colossal. Levou os porcos diretamente para lá, sentou-se em cima de uma pilha de tábuas que também tinha deixado preparadas e esperou. Quando apareceu ao longe um caminhão vazio, ele fez sinal. O motorista parou. Pedro disse que o patrão estava numa emergência, tivera que fazer uma viagem de urgência e o encarregara de vender logo aqueles porcos, bem baratinho, para mandar o dinheiro para ele. Conversa vai, conversa vem, negociou a venda de todos os animais. Com uma única condição: os rabinhos tinham que ficar. - É para eu poder prestar contas - explicou. - Ele saiu tão depressa que nem teve tempo de contar. Assim a gente controla exatamente quantos porcos foram vendidos. O sujeito achou esquisito, mas concordou. Estava com pressa. Queria fechar logo o negócio, antes que surgisse um concorrente pela estrada. Ou que aquele caipira se arrependesse de vender uns animais tão bonitos por um preço tão abaixo do que eles poderiam ser revendidos no mercado. E com os olhos brilhando, enquanto fazia contas mentalmente e calculava o lucro que ia ter, o motorista do caminhão ajudou Pedro a cortar o rabo dos animais e a guardar na carroceria todos os porcos, que subiram por uma rampa improvisada com as tábuas da pilha onde ele estava sentado. Num instante, os dois se despediram, e o caminhão sumiu na estrada. Com toda aquela porcalhada. Pedro pôs no bolso o dinheiro da venda e disse para si mesmo: - Agora estou descontando os descontos. Se eu fosse deixar de graça tudo o que tiraram de mim nesta fazenda colossal... Depois pegou os rabinhos, que tinha deixado separados em cima das tábuas, e foi espetando todos na lama, a uma boa distância uns dos outros. Todos menos um, que ficou segurando. Feito isso, foi para a casa da fazenda. Quando estava chegando lá perto, começou a correr e a gritar, como se tivesse vindo esbaforido o tempo todo: - Socorro! Acudam! Estou precisando de toda a ajuda! Foi uma correria, todo mundo em volta, e ele fingindo que estava sem fôlego, que nem conseguia falar. - O que foi? - O que está acontecendo? E o patrão: - Cadê meus porcos? Depois de muito ofegar, beber um copo d'água e fazer de conta que estava sem forças, Pedro finalmente explicou: - Levei os bichinhos para passear num lugar onde não tinha nada plantado, e eles descobriram um bom lamaçal. Um lamaçal colossal. Eles adoraram... - Sim, e daí? Conte logo! Onde estão meus animais? - Estão lá, fique sossegado... - Então pra que esse escândalo? - Bom, patrão, é que era um lamaçal tão colossal que eles foram se afundando aos pouquinhos. - Afundando? Como assim? - Afundando, uai! Ficando com as pernas presas e indo para o fundo, devagarzinho. Quando eu vi, tentei segurar o que estava mais perto. Puxei, puxei, mas não adiantou nada. Olha só! O rabo dele ficou na minha mão, e o coitadinho foi sumindo... E mostrou o rabinho que guardara. Foi um espanto! Todo mundo queria ver. O rabo, todo enroladinho, passava de mão em mão. Pedro continuou: - Eu então vi que não dava conta sozinho e vim correndo pedir ajuda. - Vamos todos para lá! - ordenou o fazendeiro. - É isso mesmo - concordou Pedro. - Mas é muito porco, nem sei se vai dar. Se o senhor me der licença, eu posso também fazer outra coisa para ajudar. - O quê? - Se o senhor me autorizar, eu posso selar uma mula e ir até o vizinho pedir reforço. Ele tem um trator bom, a gente pode amarrar umas cordas fortes nos bichos... Fica mais fácil de puxar. - Boa idéia! - concordou o patrão. - Mas não vai perder tempo selando mula, não. Monte logo no meu cavalo, que é veloz e já está arreado. Assim vai mais ligeiro. Era isso mesmo que Pedro queria. Num instante já estava longe, na direção oposta à do lamaçal colossal. A cavalo e com dinheiro no bolso. E o patrão, se não estiver esperando reforço até hoje, já deve estar com uma boa coleção de rabinhos de porco na mão. Ou ele estava pensando que ia continuar para sempre explorando todo mundo, sem nunca lhe acontecer nada, naquela fazenda colossal?