Trecho do livro O DIABO NA NOITE DE NATAL

Veremos, aqui, uma porção de personagens, quase todas conhecidas. Vocês devem tê-las encontrado no cinema ou em outros livros. Há também um grupo de meninas que os leitores, se moram, por exemplo, em São Paulo ou no Amazonas, decerto não conhecem: as pastorinhas. O pastoril, do qual elas fazem parte, é um brinquedo, um folguedo popular, muito conhecido no norte do nosso país e comum na época do Natal. Compõe-se de dois "cordões": o encarnado e o azul. Usam as pastorinhas a cor do seu cordão. Dançam, e cantam, batendo pandeiros, canções que ninguém sabe mais quem compôs. Essas canções ou loas são simples: algumas muito bonitas. Uma das figuras do pastoril veste-se de encarnado e de azul, e pertence aos dois cordões. Essa figura é a Diana. Sua presença e a das companheiras de folguedo nesta movimentada história justifica-se: tudo se passa na véspera do Natal. Na festa oferecida às personagens de sua predileção por uma boneca falante que, como tantas outras, se chama Lúcia. Lá está ela, no meio do salão, entre mesinhas de doces, pacotes coloridos, bolas de praia, guirlandas, fitas, lanternas acesas. Tudo preparado para a festa. Abre-se a porta, e aparecem os dois primeiros convidados. Quem são? Capitão Gancho e a nossa tão conhecida Chapeuzinho Vermelho. - Boneca - vai dizendo logo o Capitão, exagerando no linguajar de marinheiro -, nós não poderíamos deixar de vir. Deixei o meu navio, meus bravos piratas, meus tesouros, e rumei para cá, trazido pelos ventos da fortuna. - E por que vieram juntos, Chapeuzinho e o Capitão? - Eu vinha a todo o pano desta direção, quando encontrei, a boreste da minha rota, esta pequenina sereia. Estava desmastreada, com o ar assustado, dizendo ser perseguida por um tal de Lobo Mau. Um vira-lata de última classe, um piolhento, um viveiro de pulgas. - Sim - falou Chapeuzinho, meio trêmula. - Ainda estou me coçando. - Ofereci-lhe a proteção do meu braço e do meu gancho. E veja que coincidência: a minha protegida vinha, soprada pelas mesmas brisas que eu, em direção ao mesmo albergue. A esta palavra, "albergue", que significa hospedaria, mas também lugar onde se recolhe alguém por caridade, Lúcia estrilou: - Que história é essa? Isto aqui não é albergue, é uma casa de família, fique o senhor sabendo. - Ah! E é? Pois então não me interessa - respondeu o Capitão. - Que eu só gosto de farra, movimento e pancadaria. Se aqui é uma casa de família, até logo. - Até logo - respondeu Lúcia, aborrecida. - E saiba que já me arrependi de ter convidado o senhor. - E eu já me arrependi de ter vindo. Chapeuzinho, que olhava com muita atenção para os dois, lembrou ao seu protetor, quase chorando: - E quem vai me levar para casa, depois? - Bem... - disse ele. - Quer dizer... Está bem, eu desço a âncora. Mas não tardo a levantar ferros. Meter-me numa festa em casa de família! A que ponto eu desci! Dizendo isto, tirou do bolso uma enorme garrafa de cachaça, que bebeu longamente, em grandes goles, sob o olhar espantado das duas meninas. Enquanto bebia, entrou uma personagem da qual muito falam as histórias em versos, que se vendem em folhetos, nas feiras, em vários estados do Brasil: o Amarelinho. Estava de pés descalços, camisa por fora das calças e um chapéu de palha, meio rasgado. Perguntou, na porta: - Dá licença, moça? - Pode entrar, Amarelinho. Como vai você? - Vou que nem capim. Só cresce quando chove; e, quando cresce, o boi come. Em seguida, olhando espantado para o Capitão Gancho: - Olha a mão desse homem, minha gente! É a melhor que eu já vi, pra se armar uma rede. O Capitão não gostou e partiu para o Amarelinho, que gingou com o corpo e advertiu: - Cuidado, moço. Quanto maior é o pau, maior é a queda. - Está conversando? - protestou Gancho. - Conheço ninguém que tope parada comigo! Lúcia, assustada, procurou acalmá-los: - Por favor! Tenham modos. Isto aqui é uma festa de Natal. - E que é que tem? - perguntou o rude homem do mar, sempre demonstrando pouca educação. - Então o senhor não sabe que o Natal é uma festa da amizade? Capitão Gancho arregalou os olhos: - Ah! E é?! Nisto, chegou o Negrinho do Pas- toreio, que é muito conhecido no Rio Grande do Sul. Ele, diz-se, ensina a achar as coisas e é o herói de uma lenda maravilhosa, muito bem contada por um grande autor gaúcho, que se chamava J. Simões Lopes Neto. Falou o Negrinho: - Vim gineteando em pêlo, no meu cavalo baio. Larguei por umas horas minha tropilha de tordilhos e vim. Cruzei campos, cortei macegais, bandeei restingas, despontei banhados, varei arroios, subi cochilhas, desci canhadas e cheguei. Vocês, se não são gaúchos, não haverão de entender essa linguagem. Nem eu. Precisaria de ver, no dicionário, o que querem dizer "tordilhos", "restingas" etc. Mas não tenho tempo de fazê-lo agora, pois está na porta um sujeito que vocês conhecem e talvez admirem: o Super-Homem. Anda de braços abertos, por causa dos músculos. E mastiga chiclete. - Cheguei um pouco cedo, não é? Ok. Mas não é para menos. Vim num disco voador! Ok. E quem é que vem mais? Gosto de ir para as festas sabendo com quem vou defrontar-me. Porque às vezes vêm uns espiões do espaço, e eu preciso estar atento. - Virá muita gente - respondeu Lúcia. - Vai ser uma festa interessante. - Vai ser interessante? Ah! Então vai ser animado. Ok. Vai ser muito animado. E qualquer confusão, já sabe. Conte comigo, que eu resolvo tudo num minuto. O Amarelinho, que não estava gostando de suas maneiras desembaraçadas demais, pilheriou: - É mesmo que remédio pra dor de dente. - Exatamente - concordou o Super-Homem, sem compreender que o Amarelinho estava ironizando. - É zás-trás. E voltando-se para Lúcia: - Você tem vitamina aí? Preciso manter a minha forma. - Pois não - respondeu Lúcia, apanhando uma caixa de remédio. - Pode servir-se. Enquanto o Super-Homem comia todas as pastilhas de vitaminas a, b, c, d, z etc., ouviu-se uma gaitinha lá fora. Era um conhecido de Lúcia, o chefe da estação ferroviária. Tinha a boca repuxada para um lado. Veio com a roupa de trabalho, trazendo porém sua flautinha - ou "mi... minha gaita", como ele dizia. Era gago. - Vim na ca... ca... carruagem da Gat... ta Borralheira. E eu... trouxe a mi... minha gaita para animar a festa. - E onde está ela? - perguntaram todos. - A... gaita? - Não - respondeu Lúcia. - A Gata. A Gata Borralheira. - A... aí está. Num maravilhoso vestido feito de retalhos, entrou Cinderela, que todos nós conhecemos pelo nome de Gata Borralheira. Lúcia, ela e Chapeuzinho abraçaram-se com grande alegria. O chefe da estação, orgulhosamente, começou a tocar flauta, dançando. Como ele, todos se puseram a dançar, gritando: "Viva o Natal!". A festa começava a parecer mesmo uma festa. E mais animada ficou quando entrou na sala, dando cambalhotas enormes, um palhaço. - Epa, minha gente - gritou, quando já havia dado vinte pulos -, hoje tem espetáculo? Todos, em coro, menos o Capitão Gancho: - Tem, sim senhor! - A esta hora da noite? - Tem, sim senhor! - Alegra todo mundo, que chegou o Mangaba, temido pelos homens, querido pelas crianças e amado pelas mulheres de todos os continentes! Luta com arma branca, desafia a vida e não teme a própria morte. Mangaba, o transviado! Mangaba, o invencível! Mangaba, o corajoso! Mangaba, o Fffffofo! Viva Mangaba! [...]