O zepelim, a Netflix e o Biscoito Globo: a poderosa alquimia da memória

18/08/2016

Por Ana Maria Bahiana

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Tudo começou quando li um excelente texto do arqueólogo, egiptólogo e empreendedor britânico Tobias Stone sobre o papel da memória na narrativa histórica. Mais que na narrativa -- na história em si. Por que a humanidade repete incessantemente os mesmos ciclos? Por que temos iterações periódicas dos mesmos arquétipos: as guerras religiosas e étnicas; os expurgos; as expansões imperiais; a ascensão de ditadores e tiranos? Stone, com sua formação embasada no estudo do antigo, oferece uma resposta intrigante: porque não nos lembramos. Sim, existe o registro. Mas emocionalmente, fisicamente, visceralmente não nos lembramos mais. “Minha teoria é que a perspectiva histórica da maioria das pessoas é limitada à experiência compartilhada por seus pais e avós, ou seja, uma média entre 50 e 100 anos”, Stone escreve.

É uma perspectiva fascinante, que sugere uma ideia ainda mais desafiadora: a de que apenas os relatos, o registro da história, não valem quase nada se não vierem acompanhados da memória afetiva e emocional que lhes dá contornos claros, quase palpáveis, quase uma realidade virtual. O que nossos antepassados imediatos nos contam a partir de suas experiências têm mais peso de verdade do que o que aprendemos na escola, nos livros, nos registros oficiais, porque formam um arcabouço que envolve outros elementos, com a carga emocional da experiência vivida.

Por isso, Stone continua, é perfeitamente possível encontrar, hoje, pessoas que duvidam, por exemplo, que o Holocausto se deu, ou que acreditam que Donald Trump e outras figuras da direita populista oferecem propostas inteiramente novas e válidas, nem um pouquinho semelhantes às de tiranos fascistas do século 20. Entre outras coisas.

Sempre fui fascinada pelo papel da memória, por seus processos, pelo modo como o que lembramos se constrói. Ver meu pai -- memorialista nato, colecionador apaixonado, excepcional fotógrafo amador -- sucumbir ao mal de Alzheimer foi ao mesmo tempo um horror e uma lição sobre o poder, a delicada alquimia da memória. Da presumida escuridão total das etapas finais da doença emergiam narrativas inteiras, intactas, tão vivas como da primeira vez que foram contadas. Seria o peso do afeto, a superposição com alguma outra energia mais sutil que guardaram até o fim a imagem do Zepelim flutuando sobre a praia de Copacabana? Será por esse mesmo motivo que me lembro do cheiro e da textura de uma determinada boneca, mas tenho a clara impressão de que nunca, realmente, brinquei de boneca?

Os produtores de entretenimento de massa conhecem muito bem esse poder da memória afetiva. “Nada apavora mais um executivo do que uma ideia inteiramente original”, um produtor independente me disse, uma vez. E é a pura verdade. A ideia original abre uma nova etapa e, portanto, não tem alicerce. Mas ah! Que coisa mais certeira do que aquilo que já foi visto e assimilado emocionalmente! Aquilo que já compôs sua própria narrativa na nossa cabeça e no nosso coração, que já está ancorado na nossa memória afetiva, só precisa dos botões certos, das espoletas que vão nos levar a, imediatamente, ver e apreciar como se estivéssemos lembrando. Como se estivéssemos vivendo de novo algo que pode ou não ter sido vivido desse modo -- mas que é lembrado e, portanto, vale.

Stranger Things, a série da Netflix, sabe disso tudo muito bem. Seu imenso sucesso está em fornecer todas as espoletas certas, recriando o universo de memórias afetivas da geração que hoje tem entre 30 e 45 anos e cresceu vendo o cinema pop/fantástico da geração de Steven Spielberg, John Carpenter e George Lucas -- que, por sua vez, estavam reciclando as suas próprias memórias afetivas dos anos 1950 e 1960. É um ciclo que, com o devido incentivo pecuniário, não termina tão cedo.

Fiquei pensando também se esse mesmo poder não explica a divertida controvérsia do Biscoito Globo. Como tantos outros cariocas, eu cresci comendo Biscoito Globo. Não saberia sequer descrever seu sabor com palavras exatas, mas sei muito bem o que ele é: praia, mate gelado, o som de “croc”, o farelo pelo corpo, o mergulho, o cheiro da maresia, a areia nos pés, a conversa com os amigos. Em termos de experiências meramente gustativas, jamais colocaria o Biscoito Globo no topo da lista. O que ele é é a minha infância, a minha adolescência, a liberdade, a alegria e os simples e poderosos prazeres de estar naqueles momentos, naquelas praias. É parte do que faz de mim o que sou -- uma carioca de Ipanema, que se lembra afetivamente de tudo do seu bairro e, no entanto, talvez não seja capaz de recordar o que fez em determinada data.

Pobre rapaz do New York Times! Que memórias ele terá? Saltwater taffy em Coney Island? Eu provei uma vez. Achei um horror. Mas não era minha história.

 

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Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do BrasilFolha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964(Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

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