A foto de Lima Barreto

10/08/2016

lima-barreto

Há mais de Lima Barreto na literatura do que seus aclamados livros nos levam a imaginar. Muitos textos do autor de Triste fim de Policarpo QuaresmaRecordações do escrivão Isaías Caminha Clara dos Anjos ainda são desconhecidos dos leitores, e assim ficaram durante mais de um século. O motivo, certamente, é o fato desses textos terem sido assinados com pseudônimos. Mas isso muda com o lançamento de Sátiras e outras subversões, que acaba de chegar às livrarias pelo selo Penguin-Companhia.

Felipe Botelho Corrêa, pesquisador e professor de literaturas e culturas do Brasil, de Portugal e da África lusófona na universidade King's College London, foi atrás dessa obra desconhecida e é o responsável pela organização desta edição, que apresenta 164 textos de Lima Barreto publicados sob pseudônimos em revistas satíricas do Rio de Janeiro. A seguir, leia um trecho da introdução que o pesquisador escreveu para Sátiras e outras subversões, e conheça outro lado de um dos mais importantes autores brasileiros.

* * *

Todos os 164 textos que compõem a edição que o leitor tem em mãos são inéditos em livro, e foram publicados originalmente em periódicos. Nesse sentido, mais do que uma antologia, este volume é a revelação de uma parte da obra de Lima Barreto que permaneceu completamente desconhecida por mais de um século. Embora as razões para tal desconhecimento sejam várias, a que mais pesou certamente foi o fato de o autor ter utilizado pseudônimos em muitas de suas colaborações em revistas desde o início até o fim de sua carreira, em 1922.

O esforço para encontrar material inédito sobre o escritor também logrou identificar uma nova imagem fotográfica que, de certa forma, sintetiza a proposta deste livro. Apesar de ter sido publicada em 1907 numa revista de grande circulação e estar disponível em arquivos diversos — como é o caso dos textos aqui revelados —, somente agora foi possível identificar sua fisionomia, da mesma forma como só agora foi possível identificar alguns dos pseudônimos. Na imagem, o escritor aparece na plateia que lotou o Palace-Theatre no Rio de Janeiro naquele ano para a conferência humorística organizada pela revista Fon-Fon. Intitulado “As cariocas e os cariocas”, o evento apresentou uma galeria de figuras da cidade, que eram comicamente ilustradas no palco por dois desenhistas da revista no decorrer do espetáculo. Em meio a tantos rostos, é preciso se ater ao detalhe para poder identificar a presença de Lima Barreto, autor cuja iconografia não é extensa.

Essa fotografia é um importante registro do início de uma carreira literária e do contexto que cercava o autor naquele momento. À esquerda da imagem, sentado na quarta fileira, sério e concentrado, ele ainda não tinha adquirido o prestígio que lhe trariam Recordações do escrivão Isaías Caminha, que ele começaria a publicar naquele ano em fragmentos na revista Floreal. Ele já era, contudo, colaborador da Fon-Fon naquele momento, com textos publicados desde o primeiro número, editado em abril de 1907, ainda que sob a máscara de pseudônimos. Entretanto, nesse momento ainda não se sentava junto aos principais colaboradores, como os caricaturistas Raul Pederneiras e Calixto Cordeiro, que protagonizaram o evento e que aparecem na primeira fila, na parte inferior da imagem.

A foto nos dá uma amostra do tipo de público que uma revista popular ilustrada como a Fon-Fon tentava alcançar. Com ingressos esgotados e lotação máxima, vemos o teatro repleto de homens e mulheres de variada faixa etária, além de jovens e crianças, o que já serve como um pequeno indício do apelo e do sucesso das substanciais tiragens que a revista teve desde seu lançamento, como veremos mais adiante. Antes, contudo, é importante chamar a atenção para alguns detalhes. Mais do que uma ênfase na individualidade de cada colaborador, o que se tem aqui é uma identidade coletiva assumida e representada pela revista. O espetáculo era do grupo de colaboradores da Fon-Fon, que tinha como símbolo a imagem do automóvel que buzina a modernidade pela via da sátira visual e escrita.

Lima Barreto é um dos poucos negros presentes neste prestigiado evento na capital do país. Ele está em meio a tantas caras não identificáveis e alguns rostos que se escondem, outros que deliberadamente gesticulam para o fotógrafo e a maioria que aparenta ignorar a presença do aparato num teatro que emanava modernidade com seus elementos art nouveau. Consciente do uso que será feito da fotografia, Lima Barreto aparece encarando atentamente a câmera, buscando um contato visual com o leitor da revista. Sua vestimenta de terno e gravata está em gritante contraste com as fotos que foram descobertas nos últimos anos, em que ele aparece com o uniforme de interno do Hospital Nacional dos Alienados em 1914 e 1919. Essas três fotografias são momentos da vida e do contexto de uma personalidade que desde o princípio de sua carreira como escritor optou por produzir uma literatura subversiva que é, em grande parte, de base satírica.

A sátira para ele tinha a potência de ser combativa, revolucionária e mortal no âmbito do embate das ideias e das práticas daquele começo de século XX. Em um de seus artigos para a Careta, ele afirma:

A troça é a maior arma de que nós podemos dispor e sempre que a pudermos empregar é bom e é útil.

Nada de violências, nem barbaridades. Troça e simplesmente troça, para que tudo caia pelo ridículo.

O ridículo mata e mata sem sangue.

É o que aconselho a todos os revolucionários de todo o jaez. […]

Assim é que todos devemos fazer.

Troças, troças, sempre troças.

* * *

Sátiras e outras subversões, de Lima Barreto e organizado por Felipe Botelho Corrêa, já está em todas as livrarias.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog