Minhas páginas antigas: a balada de Bob e eu

20/10/2016

Por Ana Maria Bahiana

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O primeiro disco que comprei com meu dinheiro não foi nem dos Beatles, nem dos Rolling Stones: foi de Bob Dylan.  Chamava-se Os Grandes Sucessos de Bob Dylan e tinha uma capa muito feia, cinza com bordas azul-real, e aquele inesquecível odor da cola fedorenta que mantinha, precariamente, a integridade dos invólucros dos discos da CBS nos anos 1960. O repertório era uma mistura de faixas dos três primeiros álbuns norte-americanos de Dylan o que, para mim, recém-chegada na adolescência, não fazia a menor diferença: tudo o que eu queria ouvir estava ali -- “Blowin’ in the wind”, “Don’t think twice, it’s alright”, “The times they are a-changin”, “It ain’t me, babe”, “Mr. Tambourine Man”. E, pouco tempo depois, num compacto (isso existia!) dos Byrds, a canção que sublinhou toda a minha vida até aqui, e que se apresentou para mim como uma quimera, uma esfinge, um quebra cabeças para ser decifrado apenas com o passar do tempo: “My back pages”.

Mas eu me antecipo. Eis o que era importante para mim naquele momento, o que justificou o dinheiro acumulado com esforço, guardado de mesadas, presentes de tios por minha participação na Feira da Providência e aulas extras para colegas: Dylan para mim era como um livro, só que com música. Era algo tão infinitamente prazeroso quanto sorvete de manga do Morais: era manga e era sorvete, suas qualidades intrínsecas de prazer e descoberta mantidas intactas, embora unidas.

De Ray Charles a “Satisfaction”, o rock, até então, tinha me feito dançar, twist and shout. Dylan me fazia pensar, me dava histórias para acompanhar, palavras para descobrir. Meu inglês era razoável (afinal tinha passado três anos numa escola americana) mas a voz fanha, a articulação rápida e a falta de letras impressas me pregava peças. Eu ouvia “crawls” e não “crows” em “Don’t think twice, it’s alright”, e, não sabendo o que era o “rooster”, imaginava o ser como um bicho fofo, crawling para longe at the break of dawn.

E aqui estavam os outros poderes mágicos de Robert Zimmerman: ele me oferecia poesia e prosa, alternadamente, disfarçadas e embutidas em suas paixões por folk, country e blues. Ou melhor: ele usava (e usa) as molduras de folk, country e blues, que por si mesmas já têm, simultaneamente,  tradições narrativas e impressionistas, e as punha em torno dos temas da sua geração, que a minha pegava de rebarba. Folk, country e blues sempre contaram histórias ou captaram sentimentos. Dylan fazia o mesmo enquanto documentava a eclosão, explosão e progressiva maturidade da mais vasta geração do século 20. (Mas ele sabia que ninguém cantava os blues como Blind Willie McTell…).

Ao longo de cada novo álbum (minha aquisição seguinte, muito mais ambiciosa, foi Blonde on Blonde, na versão norte-americana) Dylan ia alimentando minha alma de escritora com detalhes, truques, ossos do ofício. Eu ouvia, ouvia de novo, me detia sobre um verso, sobre outro. Dylan me ensinava como expressar e como omitir, como transformar raiva e desprezo em algo bem mais complicado em “Like a rolling stone”, ou como desenhar amor e paixão com todas as suas ambiguidades, de “Just like a woman” ao  dilaceramento completo que é todo o Time Out of Mind.

Era livro e era também cinema, como aquele súbito plano geral ao final de “All along the watchtower”, onde também se revela que ele estava contando a história toda de trás para frente. Ou “A simple twist of fate”, que vem completo com protagonistas e coadjuvantes, uma trama em três atos e detalhes de cada ambiente.

E aí voltamos a “My back pages”, a canção-código, feita para ser compreendida apenas quando a experiência substitui a inocência. Dylan tinha 23 anos quando a compôs, e 28 quando a interpretou ao vivo pela primeira vez. Tão jovem ele já tinha perdido o suficiente para compreender que nada é mais fácil do que ser velho -- rígido, intransigente, monotemático, dogmático -- quando se tem pouco tempo na crosta do planeta. Mais uma vez, Dylan estava usando o texto como uma narrativa ao contrário, em que tudo o que ele descreve -- as admoestações, os discursos acalorados, as certezas absolutas -- estão no passado, nas back pages, quando ele era muito mais velho do que é hoje.

Ele me propunha, assim, uma meditação para a vida toda. A cada momento em que ouvia “My back pages” Dylan me convidava a refletir sobre quais certezas eu estava pronta para deixar pelo caminho, me desafiava a reverter a flecha do tempo.

E assim ele me dá o contexto para uma de minhas memórias mais antigas. Eu no assento traseiro de um carrão americano deslizando por uma Avenida Vieira Souto deserta, a praia de Ipanema nublada e chuvosa, meus pais no banco da frente ouvindo Tito Madi interpretando “Ternura antiga”, de Dolores Duran. Devo ter, no máximo, a idade que minha neta mais velha tem hoje, 5 anos. A música termina e eu ouso perguntar algo que está na minha cabeça há muito tempo: “Mãe, toda música é sempre sobre amor?” Há um longo silêncio e ela afinal responde: “Você quer dizer os versos?” Eu: “É, os versos. É obrigado ser sempre sobre amor, toda música?” A pausa é ainda maior. Minha mãe responde: “Não. Não é obrigado não. Mas quase sempre é.”

Quase sempre. Mas quase, certo?

 

* * * * *

 

Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do BrasilFolha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964(Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

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