Um mergulho no abismo da memória

18/11/2016

Por Rafael Cardoso

Faz muito tempo que queria escrever esse livro. De certo modo, a vida toda. Durante anos, décadas mesmo, fugi da incumbência com a fúria bíblica do profeta Jonas, aquele que se meteu a resistir ao destino traçado para ele por ordem divina. Até que um dia me achei no ventre da baleia. Sem nem um canivete para rasgar uma fenda. Sem saber sequer que o ventre era ventre, e que a criatura que me digeria marejava por águas frias e obscuras. A imagem pode parecer rebuscada. Literatice. Mas, quem já esteve ali (são tantos os ventres nos quais nos deixamos engolir) saberá reconhecê-la. Quando se está emparedado na própria carne, o único recurso é olhar para dentro de si. Mergulhar ainda mais fundo. Na memória que vem antes das lembranças. No passado ignorado.

Vamos começar do começo? Já é um pouco tarde para isso. Nada vem do nada, e todo inocente nasce no meio de alguma bagunça que não escolheu. Vamos começar antes do começo, então, até porque o livro em questão é uma história de família. Era uma vez na Alemanha, lá pelos idos de 1930. Havia um sujeito influente. Judeu e banqueiro. Mas, também mecenas e colecionador de arte, socialista e pacifista, sonhador de utopias. Na Berlim daquele tempo, existiam figuras assim, que não se enquadram na visão estreita imposta ao mundo desde então. Esse sujeito conhecia bem o meio cultural. Participava dos conselhos de museus e editoras e cultivava a amizade dos maiores artistas do seu tempo. Quando Thomas Mann ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1929, a festa foi na casa do tal sujeito, que se chamava Hugo Simon e era meu bisavô.

A dona dessas festas era minha bisavó. O nome de solteira dela era Gertrud Oswald, mulher de personalidade forte, a mais velha de três irmãs que se casaram todas com homens que queriam mudar o mundo. Gertrud e Hugo haviam nascido na mesma região da antiga Alemanha imperial, de nome Posen, hoje parte da Polônia. Lá, existia uma comunidade judaica vibrante, que eles deixaram por volta de 1900 para tentarem a vida em Berlim. Hugo foi estagiar num banco, aprendeu o ofício e subiu na vida. Por volta de 1911, abriu sua própria casa bancária. Sobreveio a Primeira Guerra Mundial. Na contramão do militarismo e do nacionalismo vigentes, o banqueiro resolveu se alinhar com os que eram contra a guerra por princípio. Foi um dos fundadores de uma associação pacifista que deu origem, anos depois, à liga alemã pelos direitos humanos. Seu companheiro mais famoso nesse movimento foi Albert Einstein. Resultou do seu engajamento uma breve carreira política, culminando em 1918 a 1919, quando meu bisavô ocupou durante algumas semanas a pasta de Ministro das Finanças da Prússia. Duas décadas depois, exilado em Paris, seu cartão de visitas pessoal ainda fazia menção ao fato.

Hugo e Gertrud tiveram duas filhas: Ursula, nascida 1911, e Annette, de 1917. A mais velha, minha avó, casou-se com um escultor, Wolf Demeter, oriundo de uma família católica tradicional, mas nada rica. Por volta de 1929, o casal foi morar em Paris, onde Wolf conseguiu uma colocação como assistente de Aristide Maillol, um dos escultores mais importantes do seu tempo. Foi lá que nasceu meu pai, em 1931, filho francês de imigrantes alemães. Aos quatro anos de idade, o menino virou exilado do país de origem de seus pais, depois que a promulgação das Leis de Nuremberg determinou que o casamento entre um ‘ariano’ e uma judia era considerado crime na Alemanha. Aos dez anos de idade, quando o avanço nazista terminou de expulsar a família da França, o menino virou refugiado mesmo. Em fevereiro de 1941, os protagonistas dessa história estavam todos no Brasil. Haviam conseguido escapar da Europa na última hora, antes que as porteiras se fechassem e o Holocausto tivesse início.

Na fuga, meus antepassados foram obrigados a deixar tudo para trás – inclusive suas identidades. A fim de saírem da Europa em guerra, meus bisavôs valeram-se de passaportes tchecos falsos. Meus avós portavam documentos franceses, com nomes inventados, fornecidos pela Resistência incipiente. Logo descobriram que teriam de se manter na clandestinidade também por aqui. Chegavam ao Brasil no auge do Estado Novo, um momento em que o país ainda mantinha posição de neutralidade no conflito mundial. O governo Vargas flertava com os dois lados, e boa parte do ministério alinhava-se com os interesses de Berlim. Os chamados ‘imigrantes indesejáveis’ – em especial, judeus – corriam risco de serem deportados de volta para a Europa. Depois que o Brasil entrou na Guerra do lado dos Aliados, o perigo passou a ser outro, o de internação em campos como ‘súditos do Eixo’. A família se dispersou pelo Brasil – Penedo, Barbacena, Curitiba, Campos do Jordão – lugares onde era possível passar despercebido entre outros estrangeiros, onde era mais fácil para um refugiado sumir do mapa. Aos poucos, foram incorporando suas identidades novas. Com o passar dos anos, chegou um momento em que nem precisavam mais fingir. Já não eram as pessoas que haviam sido na Europa. Aliás, a Europa que conheciam deixara de existir. Havia virado aquilo que Stefan Zweig batizou de "o mundo de ontem".

Quando eu vim ao mundo, cerca de vinte anos depois, meus avós ainda viviam sob os nomes adotados. Inacreditavelmente, para eles, a guerra nunca acabara. Eles só foram retomar a nacionalidade alemã na década de 1960 e só regularizaram definitivamente seus registros de identidade em 1972. Três décadas haviam se passado desde sua vinda para o Brasil. Quando retificaram seus documentos, finalmente, não retomaram os nomes originais. Criaram versões híbridas, que misturavam os sobrenomes antigos com os nomes assumidos na fuga. Foi nessa época, ao longo da década de 1970, que convivi com eles mais de perto. Eles nunca falavam sobre assuntos de guerra e exílio. Talvez porque não quisessem repassar os traumas para os netos. Talvez porque nunca os tivessem superado. Fui criado na crença de que meus avós eram franceses. Somente aos dezesseis anos de idade, fui saber que eram alemães e que minha avó e tia-avó eram judias. Foi a primeira vez que ouvi falar em Hugo Simon. O nome me soou dissonante, como uma música atonal para quem está acostumado a ouvir sertanejo universitário. Os fatos me pareceram absurdos. Tudo que um adolescente, ansiando por ser que nem todo mundo, não quer ouvir. Comecei ali o esforço para fugir de mim mesmo.

O percurso, desde então, foi longo. Reconstituir o passado é tarefa complexa, ainda mais na ausência das testemunhas, todas desaparecidas. O que me interessa não são tanto os fatos históricos, mas a psicologia dos personagens – dessas pessoas que conheci na infância e adolescência, sem nunca ter compreendido quem eram e de onde vinham. Por isso, resolvi que o livro precisava ser escrito como romance. Não queria que o leitor se deparasse apenas com dados e nomes e datas, mas antes que se sentisse um pouco no lugar de quem perde tudo e precisa se reinventar do nada. Num novo país, sob outro nome, falando uma língua estranha. Em última instância, é a experiência do exílio que me fascina. Talvez por isso tenha sido necessário para mim retornar a Berlim para pesquisar e escrever esse livro. No mundo de hoje – em que cada vez mais pessoas vivem uma vida nômade e no qual guerras voltam a fazer milhões de refugiados – essas velhas histórias de exílio ganham nova atualidade. De certo modo, vivemos todos uma época "sem chão", como já dizia Vilém Flusser, o refugiado tcheco que se descobriu filósofo no Brasil. O remanescente é um livro sobre o que fica depois que todo o resto se foi. Mergulha no abismo da memória para celebrar a capacidade humana de cair de pé, mesmo onde não há chão. 

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O remanescente
Sinopse:
 Ao desmontar a casa dos avós, o autor descobre nas gavetas um arquivo de fotografias, cartas e documentos amarelados. Para sua surpresa, a papelada revela que a história de seus antepassados era bastante diferente da que ele conhecia. E esses vestígios são o ponto de partida de uma tortuosa arqueologia familiar que se torna matéria da ficção em O remanescente. Da alta sociedade da República de Weimar à fuga para o Brasil sob identidade falsa, passando pelas turbulências do nazismo, o leitor conhecerá a história de Hugo Simon – banqueiro, ministro das Finanças da Prússia e grande colecionador de arte – e de sua família, num percurso que é quase um paroxismo da diáspora causada pela Segunda Guerra.

Lançamento – Sábado, 26 de novembro, às 13h30 na Livraria e Edições Folha Seca (Rua do Ouvidor, 37), no Rio de Janeiro.

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Rafael Cardoso nasceu em 1964, no Rio de Janeiro, mas viveu a maior parte de sua infância nos Estados Unidos. É historiador da arte e do design, com diversas obras publicadas na área. Estreou na ficção em 2000 com A maneira negra, ao qual se seguiram Controle remoto Entre as mulheres. Acaba de lançar pela Companhia das Letras O remanescente. 

 

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