Em tradução (Poesia)

13/07/2017

Depois de longo e prosaico verão, eu ando de novo envolvido com tradução de poesia (esperem mais notícias em breve).

Eu sou tradutor. Prático. Sofisticados discursos de intraduzibilidade, por alguma razão (sarcasmo…), tendem a não me convencer. Mas que a tradução de poesia apresenta dificuldades bem radicais, lá isso eu não posso negar. E que eu gosto delas, ora, idem!

Em sala de aula eu costumo usar um poema pequeno de Emily Dickinson (a DEUSA!!!) pra ilustrar isso pros alunos.

É esse aqui:

A sepal, petal, and a thorn
Upon a common summer’s morn —
A flask of dew — A Bee or two —
A Breeze—a caper in the trees—

And I’m a Rose!

O "sentido" pode ser traduzido mais ou menos assim:

Uma sépala, pétala e um espinho
Numa manhã comum de verão —
Um frasco de orvalho — Uma abelha ou duas —
Uma brisa — uma cabriola nas árvores
E sou uma rosa!

Não que resolva muito, certo? 

É uma metáfora da polinização? Uma alegoria da fertilidade, do desabrochar? Será que aquele "orvalho" que vem em "frascos" não representa algum outro líquido?

Enfim.. Não vou nem me meter a interpretar. Como eu sempre digo, a tarefa do tradutor é bem menos fechar uma interpretação e bem mais diagnosticar o maior número possível delas, e aí tentar manter esse número de portas abertas…

Mas, ao poema. E às necessidades da tradução.

Se aquilo fosse prosa, a tradução que eu apresentei ali em cima já daria conta de ser uma primeira versão. A semântica ficou ali, a ordem se manteve (veja a barbaridade que seria trocar a ordem do primeiro com o segundo verso, por exemplo: o sentido geral pode ser igual, mas que diferença de "apresentação", de caminhada do desconhecido ao conhecido, do estranhamento ao familiar…).

Mas aquilo não é prosa. E boa parte do seu encanto deriva de coisas estritamente ligadas à natureza do verso.

Veja o metro. Os três primeiros versos são o que a gente chama de tetrâmetros jâmbicos: papá, papá, papá, papá. O terceiro, na verdade é o que tem esse ritmo mais marcado, já que nos dois primeiros as vírgulas, por vezes, ficam no meio do pé (pa,pá), ou são as palavras que se estendem de um pé ao outro…

E parece que esse terceiro bem marteladinho está ali só pra sublinhar a diferença que virá com o quarto, que começa igual, papá (aquele ze final de breeze não conta), é interrompido por um dos típicos travessões que ela adorava e, bem quando o poema fala de uma dança, faz aparecerem três sílabas fracas seguidas (-per in the)… 

E é como se o poema te tirasse pra dançar! Só pro ritmo voltar a se estabelecer no verso final, mais curto. Tenta ler com esse ritmo. É muito lindo…

E os sons?

Além da rima clara dos dois primeiros versos (que deveria fazer esperar outra rima entre o terceiro e o quarto, mas de novo ela te passa a rasteira na cabriola…), veja que lindura a rima interna de dew com two. E a sequência de A Bee, A Breeze, the trees (de novo é o quarto verso que sacode as estruturas)! 

E, fora o paralelismo mais óbvio de sepal e petal, atente só pro quase hip-hop daquele segundo verso (-on a commonmmon summmmer’s morn). E veja de novo que o som ei daquela palavra caper é o ÚNICO ditongo desse tipo no poema todo. Ela quer MESMO sublinhar essa dança.

E, última coisa (isso aqui está LONGE de esgotar qualquer análise formal, ok? Eu tendo a usar uma aula inteira pra esse poema…), eu sei que é agramatical, mas eu não consigo deixar de ver uma sombra de trocadilho ali no final com a forma do passado (arose) do verbo arise, erguer-se…

E é aqui, portanto, depois desse mínimo levantamento de recursos formais, que pode começar o trabalho de tradução do poema. Na tentativa de "dizer" a mesma coisa, mas também de "ser" a mesma coisa. Na tentativa de reproduzir os mesmos mecanismos e efeitos sonoros que fazem parte do efeito do poema (repito, meu papel é diagnosticar conexões possíveis e tentar reproduzir todas elas). Na tentativa de produzir, em menos de trinta sílabas poéticas, a melodia, o ritmo e o sentido de um brinquedinho perfeito…

* * *

O pianista David Fray, falando sobre Bach, uma vez disse que o problema era fazer aquela música swing, sing and think (ele tem lá seu ouvidinho poético…). Dançar, cantar e pensar. 

Ritmo, melodia e sentido.

Ele podia estar falando de tradução de poesia.

* * * * *

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James JoyceDavid Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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