Cultivar histórias com delicadeza: os 30 anos de André Neves na literatura

11/12/2025

Abel é um cão. Um cão que por vezes se vê pequeno demais. 

Tão pequeno que o céu parece distante. Tão pequeno que não entende de poesia… mas sente.

Em Abel e as estrelas (Brinque-Book, 2025), enquanto brinca com as crianças-flores no jardim, Abel não percebe: mas é bem maior do que imagina.

Abel e as estrelas

Talvez, André Neves, o autor por trás deste e de mais de uma centena de livros, entre os que ilustrou e os mais de 30 em que é autor de texto e imagem, se veja um pouco como Abel - e não tenha noção da grandeza de sua obra. Em 2025, ele completa 30 anos dedicados à literatura infantil colecionando prêmios importantes, entre eles quatro Jabutis e o “Prêmio Açorianos” de melhor ilustração em 2004, além de títulos traduzidos em diversos países. Mas começa a entrevista que concedeu ao Blog Letrinhas dizendo que não achava que haveria grandes comemorações. “Fiquei surpreso quando comecei a ver tantas mensagens”, brinca.

 

André Neves completa 30 anos dedicados aos livros

Entre imagem, texto, mediação e pesquisa, André Neves completa 30 anos dedicados aos livros

 

Autor de Obax (Brinque-Book, 2010), amadíssimo dos leitores, André nasceu em Recife (PE), mas atualmente mora em Florianópolis (SC). Apesar da formação em Comunicação Social, a ilustração o levou para outra área: a literatura infantil. Criador de uma identidade única e de uma poética toda própria, ele aproxima livros de obras de arte. Suas histórias transitam em territórios imaginários na fronteira entre os sonhos e a infância, florescendo em um ritmo próprio, cultivadas sem pressa. São livros para se ler devagar. Para observar. Para contemplar.

Como ilustrador, André criou as imagens para mais de 100 histórias de outros autores. Mas em algum momento surgiu a vontade - ou a inquietude - de contar histórias com palavras próprias. “Sentia que como ilustrador tinha algo que eu não conseguia alcançar, que não conseguia trazer ao texto de outros autores como vejo que alguns ilustradores conseguiam”, conta. 

Desde sempre, tão importante para ele quanto fazer livros é mediar livros. A mediação acaba sendo uma atividade compartilhada com a criação, um momento em o autor entra em contato com outras obras, outras possibilidades e cria (ainda mais) intimidade com o livro. E não é só: ele também é pesquisador e educador. Foi professor da Scuola Internazionale d’Illustrazione Štěpán Zavřel, em Sarmede, na Itália, de 2013 a 2018, e ainda hoje ministra cursos e workshops. 

Completando três décadas de estrada, André têm planos de lançar ainda novas histórias - mas não tantas - ao mesmo tempo em que está revisitando obras antigas, pensando em como atualizá-las - com maturidade e sem apego. Ele se aproxima mais das palavras. Lê muito. Escreve mais. Compra muitos livros. Mas continua fazendo do desenho um exercício quase diário. Entre uma leitura e outra, um desenho e outro, ele conversou com o Blog Letrinhas sobre Abel e as estrelas, seu processo de criação e maturidade que a trajetória trouxe.

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Confira a entrevista  com André Neves

Abel e as estrelas

Blog Letrinhas: Você completa 30 anos de literatura infantil em 2025 com um livro novo. Como surgiu a história de Abel e as estrelas?

André Neves: Na verdade, Abel e as estrelas é uma história bem antiga! Eu tenho guardadas normalmente muitas delas.[André se levanta e tira de uma prateleira uma pilha de caderninhos. Pega um e vai mostrando as frases distribuídas entre as páginas. Palavras solitárias, sem nenhum suporte de imagens, só para marcar as viradas de páginas] Apesar de ser ilustrador, sempre faço um exercício de ver a dinâmica de leitura primeiro.. Abel era uma dessas histórias que estavam guardadas em um caderninho. Com o decorrer dos anos, eu vou acrescentando coisas que possam dar sentido a elas… No caso de Abel, comecei com uma ideia que era muito parecida com outro livro publicado pela Companhia das Letras, Manu e Mila (Brinque-Book, 2018). Foi quando surgiu o Abel, que dá uma outra dinâmica à leitura. Ele é o personagem principal, mas na minha visão, são as crianças que o tornam protagonista. Ele precisa de muito suporte dos outros personagens. 

 

Blog Letrinhas: Abel se vê tão pequeno… E  você começou dizendo que achou que não teria grande repercussão seus 30 anos de carreira na literatura infantil… Você se identifica em alguma medida com esse sentimento de Abel?

André Neves: Abel entra na história como cachorro, mas é quase como se fosse um irmão menor das três crianças. Elas já sabem brincar, sabem tudo. E ele está tentando entrar, participar. É um pouco como uma criança pequena que tenta se enturmar. 

Acredito que trabalhar com infância é estar diante do olhar da infância. Esse olhar como pequeno é um olhar presente nos livros, especialmente para crianças menores. Essa brincadeira com o tamanho é muito explorada na literatura em geral, tanto no texto quanto nas proporções das imagens, para mostrar como a criança se vê e vê o espaço. Às vezes a criança é retratada bem pequena em contraste com os pais, que são muito grandes. Ou as ilustrações mostram como a criança vê o mundo: gigante. Um animal pequeno como o Abel vê o adulto dessa forma gigante também. 

 

Brincar com a criação é muito mágico, porque acaba sendo poético. A gente acaba forçando o olhar a perceber a vida de outra forma. Perceber que tudo que é pequeno também pode ser grande, dependendo da forma como a gente vê é algo mágico.


Blog Letrinhas: Na hora de criar, você normalmente começa pelo texto e não pela imagem, com esses caderninhos?

André Neves: Eu sempre começo dando uma dimensão das leituras das histórias que eu crio, para ver se eu me sinto confortável no virar da página, sem a imagem. É o que eu chamo de roteiro. Mas no momento em que eu crio uma história, ainda que eu não execute a imagem ao mesmo tempo que escrevo, as imagens já estão no meu pensamento. Eu escrevo e visualizo. O mesmo acontece com escritores que são só escritores . 

No meu processo percebo que trabalhar a palavra pela palavra está se tornando cada vez mais simples. Talvez isso possa me ajudar, no futuro, a escrever mais. É algo que eu quero fazer como exercício.

Quando eu saio do processo do texto, a imagem me ajuda a reconstruir o que eu já escrevi. Com exercícios visuais, eu posso mudar o sentido da história, dispensar palavras. Os estudos de imagem é que vão mudar a cena. É como se eu estivesse fazendo o trabalho do ilustrador e do escritor, como se eu fosse duas pessoas diferentes. 

Tem um momento em  que eu estou preocupado apenas com desenhar.  Não de ir pensando cada imagem página a página. Mas de criar sensações. Ir testando. Isso faz parte do meu amadurecimento, eu não fazia essas experimentações no passado. E dependendo do que o desenho vai me mostrando, eu vou pondo ou tirando palavras do texto. Mas tem coisas que eu sei que não preciso escrever.

Com Abel e as estrelas, eu sempre soube que Abel é o cachorro da Rosa, uma das crianças. E que o jardim também é da Rosa e são as outras crianças, Magnólia e Jacinto, que chegam para brincar com eles. Eu sei que não preciso contar tudo, porque de alguma forma eu já estou seguro desse universo que criei.

 

Blog Letrinhas: Os seus livros têm uma poética toda própria, uma delicadeza muito particular. Em que momento você percebeu que carregava esse olhar em você?

André Neves: É algo muito meu, mas que eu só tomei consciência com o passar dos anos, quando as pessoas foram me falando e eu fui me percebendo como um ser criador da poesia. Eu já era um leitor da poesia e eu sou um mentor da poesia. Me cobro de comprar poesia sempre entre todos os livros que trago para casa.

Vejo que essa estrutura poética vai dando forma à minha criação de uma maneira natural. À medida em que eu vou tomando consciência, essa estrutura poética vai se tornando mais concreta. Eu até já tentei ir por outros caminhos - mas a minha estrutura de pensamento é assim.

Abel e as estrelas


Blog Letrinhas: É mesmo? Que outros caminhos foram esses?

André Neves: Eu acho maravilhoso um livro para criança com uma pegada cômica, mas eu sei que é algo que eu não vou alcançar. E hoje, com mais maturidade é algo que não me preocupa. 

Eu prefiro não forçar uma criação para ter algum reconhecimento ou mercado. Não quero ser reconhecido por aquilo que eu não sou. Prefiro alimentar os leitores que já me conhecem e sabem o que esperar de mim.


Me sinto confortável com o espaço que eu ocupo neste processo criativo, da poesia, de fazer coisas que me alimentam primeiro para depois alimentar o outro. Se eu consigo colocar essa poesia em mim, eu consigo colocar no outro também e tocá-lo. 


Quando eu era apenas ilustrador, eu cheguei a experimentar fazer coisas mais cômicas ou mais densas que eram escritas por outra pessoa. Mas eu acho que não conseguia dar ao livro coisas que outros ilustradores poderiam fazer. Mas essa vivência foi me ajudando a constituir a minha estrutura como autor de livro. Me ajudou a entender o que eu realmente queria fazer.


Blog Letrinhas: Em 30 anos de carreira literária, seus livros já alcançaram pelo menos duas gerações: pais leram quando crianças e agora leem para seus filhos. Como é isso para você?

André Neves: É muito interessante porque faz com eu tenha referência da minha trajetória através dos outros. E não só por aquilo que eu sei que eu fiz. Acho também que a leitura mudou muito com o passar dos anos e creio que vai mudar cada vez mais.


Blog Letrinhas: Que mudanças você observa nessas três décadas? 

André Neves: Hoje é muito mais presente a leitura através do olhar para a imagem. Também temos uma vida em que a internet proporciona rapidez. As mensagens estão pensadas para serem lidas de uma forma rápida. E isso influencia no fazer literário de quem trabalha com imagens e com palavras. Hoje no livro há muitas possibilidades de desdobrar a relação entre palavra, imagem e projeto gráfico pensando no que alguns artistas chamam de velocidade de leitura. É um exercício de buscar na nossa arte criativa que esses elementos transformem a leitura em algo confortável e rápido.

É claro que isso depende da história que vai ser contada, da experiência com livros que as pessoas têm, mas é algo que vem de perceber a relação contemporânea que se tem com a vida. E eu estou falando de rapidez, mas isso não tem a ver com ser um livro curto ou longo. A gente sabe hoje que um bom projeto gráfico consegue dar essa velocidade de leitura não apenas nos livros para a infância. Mas sabemos que nestes ainda tem mais uma camada, da relação com a imagem.

Por isso há livros meus antigos que eu estou refazendo, ou pela relação visual ou pela maturidade que eu tenho hoje, entendendo como essas obras podem funcionar diferente a partir do projeto gráfico. 


Blog Letrinhas: E como funciona esse processo de ir revisitando obras?

André Neves: É fantástico! Especialmente porque acredito que eu não vou ter muito mais livros publicados do que eu tenho hoje. Demoro muito para publicar um livro, porque respeito o tempo que as histórias me pedem. 

Como autor, revisitar meus livros antigos, sob o olhar da contemporaneidade é pensar no que está se fazendo hoje, pensar nas possibilidades que o parque gráfico oferece hoje e que não oferecia no passado. Isso torna essas revisitas muito interessantes.


Sempre falo que eu sou um autor vivo, se eu tenho capacidade de melhorar algo para o leitor de hoje, por que não fazê-lo? Eu não sou um artista plástico que pinta uma tela para a vida toda. Um livro é algo que vai ser reeditado sempre.


Claro que tem coisas antigas que eu gosto da forma como estão. Mas pegar algo meu e reconstruir me dá prazer e me traz muitas surpresas. Eu não vou fazer isso sempre porque eu continuo tendo necessidade de criar coisas novas. Mas é uma forma de aprender. Talvez no futuro eu seja reconhecido como “o autor que refaz”.

(Texto: Naíma Saleh)

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