Lydia Davis: "Uma simples descrição nunca é suficiente para abranger tudo"

11/12/2017

Por João Lourenço

Lydia Davis em Paraty, 2013.

Lydia Davis faz parte do raro time de escritores que não têm medo de encarar a câmera. Seja sozinha ou com os amigos felinos que a acompanham durante o trabalho, a imagem que a autora passa é de alguém que não pertence a este tempo. Lydia tem aquele olhar de quem sabe o que quer. 

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Após receber o contato de Lydia, demorei dias para formular uma mensagem. O que dizer para ela: considerada a “escritora dos escritores”? Como chamar a atenção para outra entrevista? Para mais uma série de perguntas do tipo: "Por favor, fale sobre o seu processo criativo"? Mesmo?

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Pergunta-e-resposta é um formato tão velho. Sempre penso em novas formas de entrevistar. Por WhatsApp? iMessage? Facetime? Insta Stories? Faria diferença? Me preocupo com o leitor. Tenho um amigo que faz parte da mesma geração de Lydia. Ele assina textos em alguns influentes jornais e revistas. Esse amigo é um ávido leitor, mas reclama que não “aprende” nada lendo entrevistas, esquece tudo após cinco minutos. Mas de quem seria a culpa? 

A boa entrevista depende do formato, das perguntas ou do entrevistado? O meu favorito é aquele em que é possível ver o rosto do artista, como no programa do Charlie Rose, sem audiência, sem aplausos, apenas entrevistado e entrevistador.

Se você tem alguma ideia ou sugestão, por favor, compartilhe nos comentários. 

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Voltando a Lydia, finalmente entrei em contato. Ela aceita falar comigo, mas com a condição de que o papo fosse por email, algo um tanto corporativo, impessoal. Mas Lydia mostrou ser uma escritora generosa e honesta, disposta a falar sobre qualquer assunto — e surpreendeu ao demonstrar interesse verdadeiro pela cultura do Brasil e pelo atual cenário de escritores latino-americanos.

Nem vem é o último lançamento de Lydia. Vende-se como “coletânea de contos”, mas não faz jus à originalidade da obra da autora. No livro, ela volta a nos apresentar uma série de momentos mundanos, aparentemente desconexos. Algumas histórias não completam uma página, outras nem mesmo um parágrafo. O espaço em branco e o silêncio forçam o leitor a refletir sobre medos e manias. Na literatura de Lydia não há espaço para fugas, grandes linhas narrativas, plot twists ou construção de personagens. A autora expõe as feridas a seco e, assim, dá nova luz às nossas pequenas obsessões.

Ler Lydia Davis é como fuçar o smartphone de um desconhecido. É como ser convidado a entrar em sonhos e fragmentos de memória das pessoas que cruzam nossos caminhos. Lydia não julga os personagens. Ela observa tudo à distância e oferece sentido para as mais diversas banalidades do dia a dia. A autora se preocupa com a sonoridade dos vocábulos. Ritmo, harmonia, precisão. E não parece nem um pouco interessada em escrever o mais novo "grande romance americano".

Lydia não acumula minúcias, não conta por contar. Entende que, hoje, Tolstói escreveria Guerra e paz pelo Twitter — até porque Napoleão teria jogado uma bomba e destruído Moscou em cinco minutos. A autora entende que a literatura contemporânea é assim mesmo: escrever mais com menos. E só uma grande artista é capaz de dizer tudo sem dizer quase nada. 

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Os críticos nunca chegaram a um consenso sobre o tipo de literatura que você assina. Dizem ser poesia, ensaio, conto, microconto. Isso te incomoda? Como descrever seu trabalho para quem não te conhece?

LD: Não me importo com a classificação. O debate é interessante e geralmente produtivo, faz com que as pessoas pensem sobre como definir diferentes gêneros. Para quem não está familiarizado comigo, costumo dizer que escrevo histórias “muito pequenas”. Uso essa resposta padrão, pois é a saída mais fácil. Afinal, sempre que descobrem que sou escritora querem saber em qual gênero me insiro. Às vezes, acrescento que minhas histórias são como “fábulas”, ou meditações — ou meditações sobre problemas. Uma simples descrição nunca é suficiente para abranger tudo.

Ao contrário dos EUA, o Brasil não tem a cultura dos cursos de escrita criativa. Assim, revistas literárias são raras e a ideia de short story não é popular entre os escritores brasileiros. Qual o maior erro que as pessoas cometem em relação a esse gênero literário?

LD: Infelizmente, mesmo nos EUA, a short story tradicional não é mais respeitada como antes. Meus pais, por exemplo, publicaram muito nos anos 1930 e 1940. Eles eram bem remunerados por isso. Hoje, por outro lado, há um crescente interesse pelo tipo de ficção que eu produzo: “muito curta”, o oposto do formato padrão, que varia entre 15 a 20 páginas. Muitas pessoas já me falaram que conto e microconto deveriam ser destinados a crianças. Não concordo. Escrevo para adultos. Talvez a melhor abordagem é comparar a minha literatura a um poema pequeno. Ambos conseguem ter peso e significado.

Uma sensação de mistério desempenha um papel importante em Nem vem. Às vezes, a ficção que você escreve soa como trechos desconexos de sonhos e devaneios. O leitor é convidado a espiar pelas cortinas por um breve momento. Você não permite que ele siga o personagem até em “casa”. Quando se escreve algo curto, toda palavra importa. O que surge primeiro?

LD: Essa é uma descrição interessante sobre um dos efeitos da minha ficção. Primeiro, surge o material concreto e específico que entrará na história — isso é tudo aquilo que “provoca” a narrativa. O material concreto pode ser um diálogo ouvido na rua ou as ações de um inseto, ou até mesmo uma pergunta que surgiu por conta de um padrão geométrico que observei em algum lugar. Me interesso pelas grandes questões filosóficas e emotivas por trás dos exemplos que citei.

Soube que você gosta de observar pessoas em pontos de ônibus. Dizem que você se considera uma observadora. Como as observações cotidianas impactam os personagens?

LD: Minhas observações são muito importantes. É uma atividade constante que ajuda a alimentar meu entendimento e interesse sobre as pessoas. Certamente isso tem um grande impacto nos personagens — alguns são, de fato, cópias das pessoas que estão ao meu redor.

Escritores costumam reclamar dos desafios que enfrentam com os finais das histórias. Como saber a hora certa de parar?

LD: Finais são sempre difíceis. Os meus próprios não são óbvios para mim. Aguardo muito tempo até chegar em um final satisfatório. Apesar de ser contos pequenos, nunca me limito a uma série de palavras. Teve situações em que achava que a história seria muito curta, apenas uma página, mas ela ganha vida própria e se transforma em várias páginas. O contrário também acontece. Aquilo que no rascunho é um parágrafo, mas no final se resume em uma frase. Ter certeza absoluta sobre o conteúdo ou extensão do texto não funciona. Preciso ter flexibilidade e espaço para desenvolvimentos inesperados.

Nos últimos anos a ficção via Twitter ganhou ar literário — pense em Black Box, da Jennifer Egan. David Mitchell e Margaret Atwood também se arriscaram no formato. Agentes e editores sugeriram que você tentasse encaixar sua ficção em uma plataforma como o Twitter. Como foi isso?

LD: Ainda não tentei escrever pelo ou para o Twitter. Não tenho conta na rede social e mal consigo responder meus e-mails. Porém, não condeno qualquer nova forma de ficção ou escrita. Acho que é importante a existência e desenvolvimento desses formatos, mas ainda não consigo avaliá-los. Espero que alguém que comece a escrever via Twitter eventualmente se destine a publicar e explorar outros formatos de literatura. 

Além de escritora e tradutora, você também ministra seminários e aulas de escrita criativa. Como é uma típica "aula com Lydia Davis"? 

LD: Estava ensinando até um ano atrás, mas de maneira muito limitada. Era um programa de escrita em que a gente se reunia por cinco encontros. Agora ensino como professora visitante de universidades, geralmente são aulas únicas. Em sala de aula, costumo oferecer muita liberdade em termos de estrutura. Ao invés de planejar detalhes com antecedência, prefiro responder às ideias que surgem durante o curso. Gosto de enfatizar a leitura: técnicas sobre ler atentamente e como pensar nos aspectos separados da narrativa, como a descrição ou diálogo. Sempre gostei dessa troca com os alunos. Nesses momentos aprendo muito sobre o que eles estão lendo — a maioria são autores que desconheço. A paixão e dedicação da geração mais nova me excita. 

Em certos lugares, o artista ainda precisa atravessar vários obstáculos para colocar seu trabalho disponível para o público. No Brasil, por exemplo, há uma nova onda de censura: performances interrompidas pela polícia e fechamento de exposições em museus. Quando se trata de literatura, o cenário não é o mais favorável. O atual governo cancelou um programa que tinha como objetivo abastecer o catálogo de literatura das bibliotecas da rede pública de ensino. O programa estava ativo desde 1997. Idealmente, o artista prospera em cenários de liberdade e incentivo. Ao mesmo tempo, quando olhamos para a história, muitos nomes e movimentos importantes surgiram e se destacaram durante e/ou após tempos de tumulto e restrições. Como você encara isso?

LD: Esse é um assunto complicado. Não tenho a certeza de poder acrescentar muito à discussão, embora seja doloroso ouvir que o governo do seu país cancelou um programa que existia há tanto tempo e, portanto, aparentemente funcionava. Porém, a “boa literatura” é criada quando o governo encoraja, sustenta ou reprime. Mas as artes em geral — pintura, música, dança etc. — são vitais para o bem-estar físico e emocional do indivíduo. O crescimento saudável e as habilidades cognitivas estão correlacionados com a arte. É uma péssima ideia cortar esses incentivos à arte nas escolas. Nos EUA, quando as escolas públicas são forçadas a economizar, muitas vezes os programas de arte são os primeiros a serem sacrificados.

O “líder do mundo livre” é uma pessoa que usa a cartada “fake news” para tudo de que discorda. O mesmo homem intimida e usa linguagem ofensiva para os que o criticam. Desde a transição de poder, em janeiro, esquerda e direita discutem os rumos da primeira emenda. A tal liberdade de expressão atravessa um período vulnerável. Qual o papel do artista em um tempo como esse?

LD: Não consigo pensar qual vai ser o resultado dessa administração terrível que assola os EUA. Li recentemente um artigo que propunha que, cada vez mais, a partir da década de 1970, a esquerda, politicamente, reprime a liberdade de expressão — e que a ideia de um debate aberto com diferentes pontos de vista está cada vez menos favorável. Nós nunca tivemos um “líder” como esse — tão ignorante, descontrolado, desinformado, impulsivo, cercado por uma péssima equipe de conselheiros. Em vários aspectos, essa é uma situação assustadora: no alcance mais longo, temos a falha na tentativa de travar o aquecimento global, enquanto a curto prazo há risco iminente de explosões nucleares. Esses são perigos reais, porém, acredito que a força de resistência vai ser vigorosa a ponto de a censura não se estabeler. E o artista deve, sim, fazer parte da resistência. Mas isso é apenas um palpite — a censura também pode se insinuar de forma muito sutil, penetrante e gradual, de modo que nos habituemos a ela. E isso também é assustador. Veja só, a longo prazo, o crescimento de uma entidade como a Amazon é algo perturbador, pois ela é uma empresa controladora, especialmente quando se trata do setor da publicação de livros. 

Após uma carreira marcada por livros e traduções premiadas, você mantém uma lista de tudo que ainda deseja explorar? 

LD: Sim, certamente. Alguns projetos permeiam a minha mente por anos. Tenho uma lista de ideias no meu computador com um punhado de itens. Ah, e alguns se tratam de romances tradicionais, longos. Talvez um dia precise escrever um livro como George Steiner (My Unwritten Books), descrevendo tudo que gostaria de ter escrito.

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João Lourenço é editor at large da revista semestral *ffwMAG* e escreve sobre cinema, literatura, música e comportamento para publicações como Harper’s BazaarABD Conceitual. Atualmente, ele planeja lançar uma revista literária independente nos EUA e está terminando de escrever uma coletânea de contos.

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