Poéticas do político, políticas da poesia

13/12/2017

Por Tarso de Melo

Os poetas sempre escreveram sobre todos os assuntos e há muita política em toda poesia. Nada de novo aí. No entanto, nunca foi raro ouvir que fulano era bom poeta “apesar da fase militante”, “apesar dos poemas mais datados”. A grandes poetas era até mesmo “perdoado” terem feito poemas que falassem com todas as letras da política de seu tempo. Vinha aí, subentendida, a afirmação de que a poesia devia cuidar das grandes coisas da vida (do Amor absoluto, maiúsculo, por exemplo) ou daquelas mais íntimas (do amor e suas dobras minúsculas), mas nunca se sujar com a “coisa pública”, com os assuntos que ocupam a capa imunda do jornal e vão embora com ele antes da manhã seguinte. Se o poeta colocava a mão nessa cumbuca, não demorava a aparecer alguém para dizer que não devia se demorar aí: há tarefas mais relevantes para suas palavras.

Neste momento inflamado que vivemos, a impressão que tenho é de que o clima mudou radicalmente. Trate ou não de política, enfrente ou não as políticas do cotidiano, é nessa chave que todo poema será lido. Não apenas cada poema. Os livros, em seu conjunto, já são objeto de um primeiro debate de natureza política: qual o perfil da editora que lançou o livro? Ela é artesanal, comercial, independente? O catálogo da editora é machista, sexista, feminista, racista? Quem bancou o livro? O edital é do prefeito de direita? Tem a chancela do governo elitista? Está legitimando o golpe?

Se escapar dessa primeira camada de questões, começa então a avaliação do perfil do autor e do conteúdo do livro: a partir de que lugar ele ou ela fala? Qual sua identificação com os temas que se destacam em seus poemas? Há comportamentos públicos ou privados do poeta que desabonem as virtudes que, de alguma maneira, sua poesia exalta?

Parece exagero, sei, dizer que o debate sobre poesia está com essas cores, mas não é nada excepcional, até onde tenho conseguido acompanhar, que a leitura enverede para as questões acima. Vou resistir a citar nomes e exemplos, mas quem lê poesia contemporânea e o que sobre ela tem sido escrito, desde a orelha dos livros até as poucas resenhas que os poetas conquistam, identificará com facilidade essa atmosfera de indagação (e indignação) política pesando sobre os livros de poesia. E isso é bom.

A antologia de 12 autores tem 8 homens e 4 mulheres? Dos 12, apenas 2 são negros? Nenhum é gay? O evento tem 20 convidados, mas apenas 3 mulheres? Todos são de São Paulo e Rio de Janeiro? 18 são de editoras imensas? Nenhum negro? Todas essas questões me parecem absolutamente legítimas. Todas as cobranças públicas que se desdobrem daí – sobre autores, autoridades etc. – são mais do que legítimas, ainda mais se lembrarmos que quem se dá ao trabalho de verificar contra qual quadro histórico se opõem esses questionamentos fica – ou deveria ficar – com vergonha de defender nosso passado ou achar que o futuro será melhor sem que muitas brigas sejam compradas.

É por isso, talvez, que os livros que têm se destacado nos últimos tempos reúnem notas altas em muitos quesitos abertamente políticos. E isso também é bom. Poemas que se rebelam, engajam, insubordinam, resistem, atacam, defendem, denunciam: podemos encontrá-los em toda nossa história (e mundo afora). Com a mesma força com que a poesia registrou os temas mais íntimos, os versos também sempre acolheram as tensões políticas da vida. Como novidade de nossa época, arrisco dizer, talvez venham as formas que os poetas têm inventado de fundir essas dimensões, mostrando como os desarranjos públicos corrompem sua “intimidade” e, na contramão, exigindo que na arena pública haja espaço para sua voz mais íntima, para tudo aquilo que até então era obrigado a esconder.

Ninguém mais aceita ser calado, ninguém mais quer ouvir contrariado e aplaudir, ninguém mais quer que decidam por si o que pode e o que não pode ser dito. Ninguém? Cada vez menos gente. É um tempo de algaravia, mas dessas vozes todas tem saído uma geração de poetas – e, a rigor, talvez devesse dizer: especialmente de poetas mulheres – cuja força é rara, múltipla, admirável. Leia e confirme.

Desde sempre, antologias, prêmios, editais, eventos e catálogos literários são objeto de críticas pesadas, mas os gritos vinham normalmente da arquibancada dos descontentes, que em quase nada diferiam – social, cultural, econômica e politicamente – dos contentes incluídos. De uns tempos pra cá, entretanto, vejo um grande avanço: a disputa em torno dos espaços ocupados pela poesia é cada vez mais pautada por critérios de democratização que temos discutido em outras esferas da vida. E creio que é por isso que o debate sobre poesia cada vez mais se confunde com o debate político em geral, entrecruzando seus temas e impasses. Poeta e poema estão sobre a mesa para um escrutínio que transcende o literário. E não depende dos poetas a decisão sobre serem lidos politicamente ou não. “Ser lido”, hoje, passa por aí. E posso apostar que a poesia ganhará muito com isso.

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Tarso de Melo é poeta, autor de Poemas 1999-2014 (Dobradura, E-galáxia, 2015) e Íntimo desabrigo (Alpharrabio, Dobradura, 2017). Seu poema “Somália” faz parte do livro 50 poemas de revolta, que a Companhia das Letras acaba de lançar.

 

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