Intromissões

14/02/2020

Por Júlio Castañon Guimarães

 

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Como não sabemos todas as línguas do mundo, sempre dependemos da tradução. “É preferível ler no original”, ouve-se com frequência, em especial quando se trata de poesia. O curioso é que justamente poetas são aqueles que com assiduidade navegam pela tradução. Manuel Bandeira, Drummond e João Cabral traduziram poesia, Murilo Mendes escreveu em francês e italiano. Se há percalços ou tropeções na tradução, eles também ocorrem nos textos ditos originais — se assim não fosse, não haveria tantos autores insistentemente reescrevendo seus textos, não só ainda em fase de elaboração de manuscritos, mas também nas sucessivas reedições. Pode-se entender a tradução como uma intromissão nesse processo, como mais uma etapa de escrita, de leitura e releitura da obra, junto com os estudos a ela consagrados. O próprio Baudelaire traduziu Poe, que foi influência fundamental em seu trabalho. E até escreveu em outra língua, em latim, e adaptou poemas de autores ingleses como se fossem seus. Nem acho que sejam os poetas os mais aptos a traduzir poesia. Talvez eles apenas percebam mais de imediato que este é um campo conexo com a própria escrita, com a qual já estão envolvidos.

Quando da publicação de uma das últimas traduções de Dante para o francês, a autora do trabalho, Danièle Robert, interrogada sobre justamente o porquê da tradução, dá uma curiosa mas talvez não tanto inesperada resposta. Disse que tinha sido seu trabalho de tradução de outro poeta, Guido Cavalcanti, que a havia levado a pensar na tradução de Dante. Ter feito a tradução de Cavalcanti abriu-lhe a perspectiva de traduzir Dante, ou melhor, mostrou-lhe a possibilidade de o fazer. Sem dúvida, ela, com essa explicação, ressalta que as traduções se associam no plano de um processo literário. A justificativa para mais uma tradução de Dante em francês — língua para a qual já há considerável número de traduções — foi de natureza literária, no âmbito de autores que se relacionam.

Minha experiência, embora um tanto diferente, envolve também autores que se encadeiam, por assim dizer. Traduzi um pequeno conjunto de poemas de Mallarmé (Brinde fúnebre e outros poemas) e algum tempo depois um conjunto de poemas de Paul Valéry (Fragmentos do Narciso e outros poemas). Ambos, Mallarmé e Valéry, são devedores confessos e reconhecíveis de Baudelaire. Valéry chega a dizer que sem Baudelaire não teriam existido Rimbaud e Mallarmé. Traduzir Baudelaire, para mim, seria chegar a essa fonte de onde vieram não só esses outros poetas com que eu já me havia confrontado, mas, segundo um renomado crítico baudelairiano, a própria noção de poesia a partir de meados do século XIX.

Baudelaire é um dos autores mais influentes da história da literatura — entre os mais lidos, mais estudados. Como ainda se envolver com sua obra? Essa obra que inclui poemas excepcionais e muito conhecidos, como “Convite à viagem”, “O albatroz”, “Uma viagem a Citera”. Sobretudo por já ter sido traduzido mais de uma vez para o português, como seria possível se envolver com uma nova tradução? Foram as duas perguntas que me pus antes de enfrentar a tradução de As flores do mal.

Outro dado importante é que minha leitura do autor vinha de longuíssima longa data, tendo — o que me foi de grande importância — começado pelas traduções — as de Guilherme de Almeida e Jamil Almansur Haddad para a poesia, a de Aurélio Buarque para a prosa. Não sei se é preciso contrapor as traduções; talvez apenas lembrar que algumas caducam, seja por irem revelando aqui e ali problemas, seja por sua própria concepção. A leitura de um texto em mais de uma tradução sempre pode ser proveitosa, assim como a leitura de diferentes interpretações da obra. Ao enfrentar um autor a ser traduzido pede-se não só uma concepção de tradução, mas — o que é quase uma obviedade — uma compreensão do autor.

A tradução de poesia é tradução de versos, acentos, estrofes, rimas, imagens, referências, e assim por diante. É um complexo que se propõe a ser recomposto em outra língua — haverá impossibilidades, mas haverá também lances novos. É sabida a história de Guimarães Rosa que lembra a seu tradutor alemão que a tradução de determinada palavra não estava correta, o significado não era aquele proposto, mas o escritor sugeriu, ao mesmo tempo, que se mantivesse a solução “equivocada”, pois lhe tinha agradado.

Pode parecer que se vai fazendo a tradução na sequência do texto, e isso ocorre, há esse trabalho localizado, mas há um trabalho de amplitude maior, que é procurar que tudo se encaixe — o poema, o livro, a obra. No caso de Baudelaire muito se chamou a atenção para o fato de ele atribuir enorme importância à organização do livro, que não era visto por ele de modo algum como uma simples reunião de poemas. É preciso ter em mente pelo menos o que é a grande proposta do poeta. É possível dizer que Mallarmé e mesmo Valéry são poetas da sintaxe — Baudelaire também o é, mas sua inovação mais evidente se passa em outro campo.

Outro ponto importante é que muito se falou, em especial um crítico como Auerbarch, sobre o trânsito entre o elevado e o inferior na poesia de Baudelaire. Perceber isso é necessário. Um exemplo? Num dos poemas que considero dos mais impressionantes — “O cisne” —, da invocação ao personagem trágico de Andrômaca logo se chega aos casebres, ao entulho confuso, ao capim intruso. O poema se desenvolve quase num vai e vem entre o que é grandioso e o descontrole das grandes cidades. E é assim que também se desenvolve boa parte dessa poesia.

A tradução acaba tendo de fazer um movimento análogo, indo do mais localizado, aparentemente mais simples, como a resolução de uma ambiguidade vocabular, por exemplo, até a organização de uma longa frase que estende por vários versos — com sua métrica, acentos e rimas. Ao mesmo tempo, quando parece que se está lidando exclusivamente com aspectos técnicos, não há como ficar indiferente às convulsões e às inquietações dessa poesia que lida com o confronto permanente entre aspirações e o reconhecimento do que há de mais rasteiro.

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