Diários do isolamento #2: Elvira Lobato

24/03/2020

Os “Diários do isolamento” são parte do projeto Leia Em Casa — que está oferecendo uma série de conteúdos especiais para quem vai permanecer em casa nos próximos dias — e pretendem fazer um registro coletivo de uma experiência nova, inesperada, cheia de incertezas e que ainda não sabemos quanto tempo durará.

A ideia é tentar diminuir a distância entre as pessoas, aproximando vozes distintas, de áreas, opiniões e idades variadas, como uma conversa em que os relatos se complementam. A cada dia um autor diferente traz para o leitor um texto sobre a vivência deste momento difícil em que a união é fundamental para mantermos a saúde física e mental. Jessé Andarilho abre a série dos Diários, que conta com a participação de Elvira Lobato, Fábio Moon, Jarid Arraes, Eliana Souza Silva, Alejandro Chacoff e Luisa Geisler.

E nunca é demais lembrar: em tempos assim, a leitura e a informação são essenciais — e o livro segue sendo a melhor companhia.

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Elvira Lobato*

Diários do isolamento

Dia 2: Meu début no panelaço

Foto de Elvira Lobato

 

O confinamento em casa para tentar escapar do coronavírus já me rendeu uma história para contar aos netos quando sair da bolha na qual me encontro desde sexta-feira 13. No quinto dia de reclusão voluntária, participei do meu primeiro panelaço em protesto contra as posições estapafúrdias do nosso presidente. As luzes do quarto estavam apagadas e só meu marido testemunhou o ato de rebeldia.

Não, não foi por conservadorismo que cheguei à faixa etária de risco do coronavírus sem ter participado de panelaços. Sou jornalista, e não exponho publicamente minhas posições políticas para não ter a isenção de meu trabalho questionada. Assimilei de tal modo esse código de conduta profissional que continuo a segui-lo mesmo depois de me aposentar do jornalismo diário. Desde 2012 sou repórter freelancer.

Mas, depois de ouvir o presidente Bolsonaro afirmar na TV que tinha o melhor time de ministros de todos os tempos, e que a população deveria parabenizá-lo como técnico do time, não resisti e aderi ao protesto. Isso aconteceu na noite do dia 18, quando estavam programados dois panelaços: um contra o presidente e outro a favor dele, com diferença de meia hora entre um e outro. Pelo menos na minha vizinhança, os dois foram de protestos. Só participei do primeiro, para não dar margem a dúvidas.

Fui à cozinha, peguei uma panela grossa de alumínio batido — dessas usadas pelos cozinheiros dos botequins — e uma colher de pau que tinha comprado dos índios Pataxó numa viagem à Bahia. Corri para a janela e contribuí vigorosamente para a barulheira. Não berrei palavras de ordem, nem proferi desaforos, mas golpeei a panela sem dó, como se a coitada tivesse alguma responsabilidade por nossas agruras. Ela se mostrou resistente e continua inteira para futuros protestos. Neste momento, ela e a colher de pau descansam sobre a minha escrivaninha.

Devo dizer que ainda não assimilei integralmente a informação de que sou parte do grupo de risco para o coronavírus pelo fato de ter 66 anos.  Não me sinto velha por dentro. Eu, idosa? Como assim? Mas obedeço a ordem para ficar em casa. Não encontrei nenhum argumento para contestar essa recomendação médica.

O confinamento não amorteceu minha curiosidade jornalística. Passo os dias imaginando pautas para os repórteres. Nos primeiros dias, eu estava muito voltada para a minha família e sofri demais com o afastamento dos filhos e netos. No último contato com minha netinha de três anos, ela saltitava de alegria ao me ver. Mas eu entreabri a porta e passei a eles o álcool gel para que ela, o irmãozinho e os pais se higienizassem antes de entrar no templo dos velhos.  Eles ficaram alguns poucos minutos e se foram levando um bolo de laranja e uma carne assada que preparei para se lembrarem da avó. Faz uma semana que não os vejo.

Afastada da família, passei a olhar mais para o mundo fora da minha bolha e disparei a dar telefonemas para pessoas da periferia pobre do Rio de Janeiro que conheci como repórter. Me angustiei com os relatos, achei que a imprensa não estava dando destaque suficiente para a situação dos moradores das favelas, que não têm sequer sabonete suficiente para lavar as mãos. Mobilizei meu marido e minhas amigas do site Mulheres 50Mais, fundado por um grupo de jornalistas do Rio de Janeiro e doamos quase mil sabonetes para famílias pobres de Nova Iguaçu. Um grão de areia no deserto, diria minha mãe, mas me trouxe uma sensação de estar sendo útil de alguma forma de dentro da minha gaiola.

 

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Elvira Lobato é jornalista e trabalhou na Folha de S.Paulo por 27 anos. Venceu alguns dos principais prêmios de jornalismo no Brasil, com destaque para o Prêmio Esso em 2008 pela reportagem sobre o crescimento do patrimônio da Igreja Universal. Antes da Folha, trabalhou para o Diário de Notícias, Gazeta de Notícias, Última Hora, e foi colaboradora do Jornal do Brasil e do Opinião. Elvira é autora de Instinto de repórter, publicado em 2005. Em 2016, foi homenageada pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) pelo conjunto de seu trabalho jornalístico. Em 2017, publicou Antenas da floresta: a saga das tvs da Amazônia pela editora Objetiva.

 

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