Ao perdedor as batatadas

28/03/2021

Por Huendel Viana*

 

É isso mesmo! Ele apareceu aqui no escritório. Em carne e osso, e uma maldade gaiata. O Tinhoso, o Coiso, o encarregado de Belfegor, o Risonho, o Sem Caneta, o Tapa Olho, o Pior que Traça, o Embaça Óculos, o Antialfarrabioso, o Estragalivros: Titivillus, o demonho do revisor.

Cheiro de enxofre não tinha não. Mas o bicho é encapetado, mexe em tudo. Lépido, pulou em cima da mesa, destampou as canetas, riscou o monitor, mastigou as borrachas e jogou um calhamaço pro alto. Essa parte, confesso, naquele dia de trabalho maçante, me agradou.

Na hora juntei um bloquinho para entrevistá-lo e fui lançando as perguntas. Ele respondia de forma breve e desinteressada, enquanto pegava livros da estante para apontar meus cochilos em antigos trabalhos. Parecia conhecer os erros de cor, tão rápido os localizava. E os livros que tinham seu dedo iam sendo atirados ao chão com uma risada festiva.

Enfim, foi um dia atípico, de cujos detalhes constrangedores poupo o leitor, porque eu mesmo busco esquecê-los. Omne transit, tudo passa. Titivillus, com o perdão do trocadilho, é infernal. Convém não provocá-lo. Como diz o poeta: revisor que dorme a gralha leva.

A entrevista é mirrada, por certo, mas foi o que consegui arrancar desse piolho que tem infernizado muitas cabeças por aí. Com vocês: Entrevista com Titivillus.

 

Pra que fazer isso?

Quem não gosta de gato?

 

A perfeição incomoda?

O criador é enfadonho.

 

Você acha engraçado?

Ri mais quem erra menos.

 

Persistindo o vencemos!

Sempre surge uma forca.

 

Uma última palavra.

Ao perdedor as batatadas.

 

E antes de partir, o brejeiro ocupou a cadeira, abriu outra caneta e rabiscou, à minha revelia, uma folha da prova que eu vinha revisando. Depois sumiu como tinha aparecido, num piscar de olhos, como os gatos.

O que ele escreveu?, vocês devem estar se perguntando. Nada mais do que os mandamentos do revisor, este guia de sobrevivência que ora oferto aos caros colegas de ofício, em comemoração ao nosso dia.

 

MANDAMENTOS DO REVISOR

1. Amar a Leitura sobre todas as coisas

2. Não tomar seu santo sentido em vão

3. Ignorar domingos e festas

4. Honrar Dicionário e Gramática

5. Não cochilar

6. Não pecar contra a claridade

7. Não pular

8. Não levantar falso erro

9. Não desejar a musa do próximo

10. Não cobiçar as obras alheias

 

Agora volto ao calhamaço, que mesmo desconjuntado não deixa de me encarar com austeridade. Olho aberto e vida longa!

 

***

Huendel Viana é mestre em teoria literária pela USP e revisor da Companhia das Letras. Assina a coluna “Aspectos da Literatura Poços-Caldense” no Jornal da Cidade de Poços de Caldas (MG).

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