Zuenir e a interpretação da cultura

01/06/2021

 

Em crônica de janeiro de 1968, o dramaturgo Nelson Rodrigues contou experiência de visita ao bar Antonio´s, reduto de parte da esquerda no Rio de Janeiro e escolhido por ele por ter a “função e o destino do boteco ideológico”, além da expectativa de lá encontrar o seu amigo Otto Lara Resende. Iniciando o texto com a frase “como bebem as esquerdas!”, mas com a ressalva que “vale a pena atravessar três desertos para vê-las”, Nelson relata um passeio com o psicanalista Hélio Pellegrino no Parque Lage dizendo que o local era o anti-Antonio’s. Escreveu Nelson: “Em seu estado normal, e enquanto sóbria, a festiva não é festiva. Tem que, primeiro, encharcar-se. E, assim, sem arredar pé do Antonio’s, a festiva chegará aos setenta, oitenta e, eu diria mesmo, noventa anos. Saí do Antonio’s, no fim da madrugada. Lá ficaram as esquerdas, babando o seu pileque e arrotando os últimos palavrões”.

Considerado um dos representantes da “esquerda festiva”, o jornalista e escritor Zuenir Ventura chega aos 90 anos, com um percurso de vida que se relaciona com Hélio e o próprio Nelson pouco mais de um ano depois da publicação dessa crônica. Zuenir e Hélio ficaram presos juntos logo após a decretação do Ato Institucional nº 5. Nas primeiras vezes que Nelson fez visitas ao psicanalista na prisão, Zuenir mostrava resistência e virava as costas ao visitante dizendo ao colega de cela que não queria conversa com quem escrevia a favor da ditadura. Hélio foi lhe ensinando a entender aquele personagem contraditório e complexo. Em determinado momento, Nelson intercedeu para que o general Assunção Cardoso, chefe do Estado-Maior do I Exército, liberasse Hélio e, por consequência, soltasse Zuenir também.

O contato com a trajetória de Zuenir possibilita a imersão em universos e temas das relações entre comunicação, cultura e política no Brasil. Graduado em Letras Neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, onde foi aluno de Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Celso Cunha e Cleonice Berardinelli, Zuenir começou no jornalismo na segunda metade da década de 1950 no jornal Tribuna da Imprensa, de propriedade de Carlos Lacerda, na função de arquivista, envolvendo recorte de jornais, a separação de fotografias e o atendimento aos repórteres. A grande virada aconteceu quando, já formado e dando aulas no ensino médio, Zuenir passava na redação e Lacerda perguntou quem poderia escrever um artigo sobre a morte do escritor Albert Camus. Ele se prontificou a fazer, mesmo receoso de que poderia receber alguma bronca do dono do jornal, caso não gostasse. Correu para escrever, já que o artigo sairia no dia seguinte. O texto recebeu a chamada de capa, ao final da página, com lembrete do redator de plantão: “Prezado leitor, hoje damos o lugar de honra, na página 4, a um artigo sobre Albert Camus, escrito pelo nosso companheiro Zuenir Carlos Ventura. Na página 5, escritores brasileiros falam sobre o grande escritor desaparecido ontem”. Na Tribuna, Zuenir conheceria sua parceira de vida: a jornalista Mary Akiersztein, que assinava no Segundo Caderno uma seção sobre artes plásticas e com quem se casou em 1962.

As várias funções exercidas por Zuenir na imprensa (repórter, editor, chefe de reportagem, diretor de redação, chefe de sucursal e colunista) em uma variedade de publicações (Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã, Diário Carioca, O Cruzeiro, Fatos & Fotos, Visão, Veja, IstoÉ, Jornal do Brasil e O Globo) representaram um percurso longo pela história do jornalismo, testemunhando especificidades desses veículos de comunicação, perfis editoriais e meandros das relações profissionais. No grupo de jornalistas com os quais trabalhou, os contatos nas redações e projetos em comum propiciaram a formação de uma grande rede, com as presenças de Elio Gaspari, Dorrit Harazim, Artur Xexéo, Joaquim Ferreira dos Santos, José Castello, Flávio Pinheiro, Marcos Sá Corrêa, Vladimir Herzog, entre outros.  

Os seus caminhos pelas redações cariocas abrem oportunidade de conhecimento sobre estruturas administrativas, situação econômica dos periódicos, formação de equipes de trabalho, projetos desenvolvidos e repercussão das atividades entre leitores e comunidade jornalística. Zuenir acompanhou parte do processo de modernização da imprensa carioca e, paralelamente a isso, as histórias do fechamento de jornais e revistas, em um quadro de concentração das empresas jornalísticas na cidade. Se no começo da sua carreira ainda veria os resquícios de um perfil de jornalista ligado à boemia, de formação em Direito, em sua maioria, e dos encontros nos bares após os horários de fechamento das edições, ele presenciou, aos poucos, as mudanças para a configuração empresarial e a entrada no mercado de profissionais formados em Jornalismo. Alguns foram seus alunos no curso de Jornalismo da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ).

Como repórter, Zuenir caminhou pelas ruas do Rio de Janeiro, de outras cidades brasileiras e do exterior, em uma frente de trabalho nas realidades de temáticas variadas, como a violência urbana, exclusão social e iniciativas no campo político. Fez entrevistas com vários personagens da história brasileira, entre eles, o poeta Carlos Drummond de Andrade, a atriz Dina Sfat, o cronista Rubem Braga e o sociólogo Herbert de Souza (Betinho). Os trabalhos jornalísticos são marcados por um processo de atenta escuta do outro e sem imposições de certezas. Na função de editor, ele direcionou pautas aos repórteres, organizou coberturas jornalísticas, teceu comentários sobre os textos e conversou com artistas que questionaram o viés de alguma matéria. Observou o início da carreira de jovens jornalistas que escreviam as suas primeiras reportagens em cadernos culturais. O contato próximo com os jovens fez com que amigos jornalistas o chamassem de “vampiro da juventude”, mas em uma relação de troca de aprendizados, parcerias e incentivos. Um apelido vem de mais tempo: “mestre Zu”, uma maneira afetiva que interliga a sua relação com ex-alunos e profissionais da imprensa.

Os caminhos da cultura, de tramas, glórias e dificuldades, tiveram atenção especial ao longo de sua carreira. Ele contou e reconstituiu na imprensa os movimentos culturais, a descrição das circunstâncias, as atividades realizadas, os desafios encontrados pelos artistas em razão da censura e as políticas de governo para a área. Os seus relatos foram impactados pela sua própria inserção em situações sociais e culturais vividas no período da ditadura militar, quando participou de comícios, manifestos, passeatas e grupos de discussão cultural.

A atividade se voltou para as práticas de difusão e transmissão na imprensa e no mercado editorial das produções culturais, bem como a reconstituição de outros períodos históricos (caso do livro 1968: o ano que não terminou), a partir de entrevistas, leituras, acesso a documentos e longo processo de apuração. Nos anos da ditadura, em meio aos comportamentos duvidosos e complexos das empresas onde atuou, as suas práticas profissionais demonstraram dimensão de resistência. As páginas da cultura se transformaram em espaços de uma “rede de recados” em algumas direções: a reafirmação dos valores democráticos, o papel da cultura no campo da resistência, o reforço da brasilidade e a construção de uma identidade de oposição ao regime. No processo de abertura política do país, ele incentivou jovens repórteres de sua equipe a perceber o surgimento de novas tendências e mudanças dos padrões comportamentais que colocavam em xeque visões conservadoras e autoritárias.

Próximo dos acontecimentos e testemunha de muitos deles, Zuenir teve o jornalismo, além de sua viabilidade financeira, como importante meio de difusão do debate cultural e de alternativa para promover as recordações de eventos passados. A força do testemunho, o papel das lembranças, a observação do cotidiano, a interpretação das dinâmicas culturais, o perfil pessoal conciliador e a vocação para as amizades convergiram neste percurso, embora Zuenir atribua ao acaso muito do que se passou na sua vida. A chegada aos 90 anos em momento de pandemia deve ser mais um, mas com o potencial do agradecimento de amigos e leitores por essa ventura.

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Felipe Quintino é jornalista e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).

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