Poesia na Companhia: Olimpíadas

11/08/2021

 

“Canta, canta, canarinho,/ a sorte lançada entre/ o laboratório de erros/ e o labirinto de surpresas””, escreve Carlos Drummond de Andrade no poema “Os atletas”. Em meio a vitórias e derrotas da Olimpíada, assistimos aos instantes decisivos que coroam anos – vidas inteiras – de esforço, talento e empenho. “Pratiquei o esporte com violência/ e uma vez (trágica melancolia!)/ nadei com aparente desenvoltura/ (peito arfante e dilacerado)/ mil metros na butterfly…”, diz Hilda Hilst em “cançãozinha triste”. Pingue-pongue, futebol, natação, skate, salto ornamental: nesta breve seleção de poemas, convidamos o leitor a conhecer as mais diversas e surpreendentes modalidades.

 

 

em Ligue os pontos

 

Deixa passar a noite

.
antes do big bang o mundo
era uma bola de ping-pong
e ao redor dela nada nada
nada a não ser o silêncio
como nos pastos ou nas casas
em que já não mora mais ninguém

..
até que ao redor da bola o silêncio
do nada conspirou para que
surgisse a primeira raquete
e logo em seguida a segunda
e do jogo das duas logo nasceu
tudo: o sol o céu o sal o som
o chão a terra o trigo o pão
o pasto o pelo a pasta o palm
top o lap top o pop rock y vos

...
quando anoitece e o silêncio
estronda novamente ao redor
das esferas pálidas não esquece
que basta um encontro de partículas
para assistirmos boquiabertos
ao nascimento do mundo.

 

 em Balada do festival (Da poesia)

 

cançãozinha triste

E fiz de tudo…
Fui autêntica, durante algum tempo.
Fui inquietude e fragilidade.
Brilhei em roda de amigos.
Pratiquei o esporte com violência
e uma vez (trágica melancolia!)
nadei com aparente desenvoltura
(peito arfante e dilacerado)
mil metros na butterfly…
Fui amante, amiga, irmã,
sorri quando ele me disse coisas amargas…
E nada o comove.
Nada o espanta.
E ele mente
e mente amor
como as crianças mentem.

 

em Versiprosa

 

Aos atletas

Os poetas haviam composto suas odes
para saudar atletas vencedores.
A conquista brilhava entre dois toques.
Era frágil e grácil
fazer da glória ancila de nós todos.

Hoje,
manuscritos picados em soluço
chovem do terraço chuva de irrisão.
Mas eu, poeta da derrota, me levanto
sem revolta e sem pranto
para saudar os atletas vencidos.

Que importa hajam perdido?
Que importa o não-ter-sido?
Que me importa uma taça por três vezes,
se duas a provei para sentir,
coleante, no fundo, o malicioso
mercúrio de sua perda no futuro?

É preciso xingar o Gordo e o Magro?
E o médico e o treinador e o massagista?
Que vil tristeza, essa
a espalhar-se em rancor, e não em canto
ao capricho dos deuses e da bola
que brinca no gramado
em contínua promessa
e fez um anjo e faz um ogre de Feola?

Nem valia ter ganho
a esquiva Copa
e dar a volta olímpica no estádio
se fosse para tê-la em nossa copa
eternamente prenda de família
a inscrever no inventário
na coluna de mitos e baixelas
que à vizinhança humilha,
quando a taça tem asas, e, voando,
no jogo livre e sempre novo que se aprende,
a este e aquele vai-se derramando.

Oi, meu flavo canarinho,
capricha nesse trilo
tanto mais doce quanto mais tranquilo
onde estiver Bellini ou Jairzinho,
o engenhoso Tostão, o sempre Djalma Santos,
e Pelé e Gilmar,
qualquer dos que em Britânia conheceram
depois da hora radiosa
a hora dura do esporte,
sem a qual não há prêmio que conforte,
pois perder é tocar alguma coisa
mais além da vitória, é encontrar-se
naquele ponto onde começa tudo
a nascer do perdido, lentamente.

Canta, canta, canarinho,
a sorte lançada entre
o laboratório de erros
e o labirinto de surpresas,
canta o conhecimento do limite,
a madura experiência a brotar da rota esperança.

Nem heróis argivos nem párias,
voltam os homens—estropiados
mas lúcidos, na justa dimensão.
Souvenirs na bagagem misturados:
o dia-sim, o dia-não.
O dia-não completa o dia-sim
na perfeita medalha. Hoje completos
são os atletas que saúdo:
nas mãos vazias eles trazem tudo
que dobra a fortaleza da alma forte.

 

em Me segura qu’eu vou dar um troço

 

futebol — taro da massa.

Futebol — taro da massa. o não quero nem saber das classes populares. bicha: amo Rivelino. jogos da copa = maior superprodução brasileira. Grã-fina esquerdistex: vai aparecer um dia um Pelé como Cassius Clay. a vida pacata do toureiro espanhol. a revolução não pode ser dominada pelos reformistas (a respeito dos comentaristas de futebol na copa do mundo intersaltIII) há um país lutando por baixo com a bola nos pés caminho do gol metendo as caras pra conseguir no peito. o jogador: sou safado o cara no Brasil não sobrevive se não for malandro. aventura da linguagem. a pilantragem do senhor tigre. tudo afinal se passa no plano da lingua - gem. tudo afinal se passa como um plano da aventura da linguagem.

 

em Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo

 

A garota medalha


a garota medalha é a garota das medalhas
ganha a vida entregando medalhas
nas competições de natação

é um trabalho como outro qualquer
e pode ser bem divertido se as outras garotas
forem do tipo que sabem se divertir

os atletas não se divertem porque estão
concentrados e precisam vencer
nem todo atleta sabe dar valor às garotas medalhas

ser garota medalha é apenas um dos trabalhos
da nossa garota medalha — neste mês
ela também será a garota animadora na festa

uma festa na madrugada do dia vinte e cinco
ganhará quase dez vezes mais do que ganha
sendo a garota medalha, mas não terá tempo

tempo pra sentar e conversar — a garota medalha
teve oito empregos diferentes durante este ano
mas este ano não acabou

a garota medalha ganhará um vestido vermelho
pra trabalhar na tal festa — fazer parte
de um momento de vitória é fazer parte

de um momento de beleza

a garota da medalha é comprovação da beleza
e da sorte — a beleza não é a sorte e não é a inteligência
um atleta precisa ser inteligente

a garota medalha tem família, mas eles não são daqui
a garota medalha acordou — a beleza, o vestido, a festa
a garota medalha se esforça: nossa garota medalha

a beleza é um presente

 

em É agora como nunca

 

salto ornamental 

os poucos segundos diante da câmera
não fariam jus aos anos (uma vida
inteira) de ensaios e dores musculares
e alimentação regrada e tantas outras privações
os poucos segundos mostram
a atleta no trampolim
ela se prepara para o salto
ornamental que quem sabe
vai lhe render uma medalha
uma vaga na olimpíada
a consideração de alguém tanta coisa
o treinador apreensivo finge
tranquilidade no telão
vai dar certo já fizemos isso infinitas vezes
ela se prepara para o mergulho
pensa que o melhor é não pensar
em nada transmitir coragem e autoconfiança
os fotógrafos bastante entediados
sem conseguir entender o que dá
a certos atletas um décimo a mais um a menos
no fim das contas é só um pulo na piscina
a não ser que erre feio
que caia de costas ou de barriga
que uma perna vá pro lado
que um braço não fique junto ao corpo
a não ser que o mergulho seja bruto
e suba muita água a não ser que seja
algo menos que perfeito
o passo de dança ensaiado em cada milímetro
que começa com um sorriso e termina
com a piscina recebendo a atleta sem alarde
sem ondas na água quase
como se nada tivesse acontecido
a atleta se prepara é dada a largada
na hora do salto sabe-se lá
o que se passa na cabeça
enquanto finge não passar nada
em sua concentração budista e sua serenidade
ela corre com destreza no trampolim
e mergulha na água de cabeça
sem o mortal as três piruetas a manobra prevista
que treinou a vida toda e lhe valeria
uma medalha ou anunciantes ou um aumento
sobretudo a admiração de alguém
ela esquece
não teve vontade
deu um branco vai entender
mergulhou de cabeça na água
assim como se estivesse de férias
no telão a expressão incrédula do treinador
o zero gordo dos jurados
os fotógrafos finalmente entretidos

 

em 26 poetas hoje
(org. Heloisa Buarque de Hollanda)

 

olho para o pio luminescente
enquanto a chuva escorre na vidraça
e nos ofusca, tontos de tanta luz.
tudo se deixa ver mais claro:
continuamos a contemplar a silenciosa natação
/do outro.
em versos, a vida cobre o pátio
/com estátuas brancas
e atravessa a sala; deitando na vitrola.
navego solto na corrente, rumo
/ao esquecimento vagaroso
da luta, do carrossel, do circo inteiro.
da janela, a ave migratória.


 

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