Querido diário

21/12/2021

 

Querido diário,

O ano está acabando e esta é a última coluna que escrevo para o blog da Companhia das Letras antes de 2022. Fiquei pensando em escrever sobre o documentário dos Beatles e sobre as mitologias contemporâneas a que temos direito ou sobre como o destino deles me interessa porque é trágico, mas percebi que não é sobre isso que quero escrever. Talvez sobre como tenho vontade de atravessar os limites do que é possível dizer e desafiar a linguagem, entendendo vírgulas, pontos e maiúsculas como os policiais que trabalham na fronteira e as palavras como passageiros e refugiados clandestinos que procuram driblá-los para conseguir passar para o lado de lá. Afinal, o que guardam esses burocratas da língua, de que nos protegem? Se as palavras pudessem correr soltas, sem o controle desses e outros tiranetes, para onde iriam, o que diriam, por onde não andariam? Talvez corressem como nos sonhos, desacertadamente, pululando por sentidos perdidos, atabalhoando florestas de símbolos e trazendo raízes, musgos, ervas e gemas vindas de terras desconhecidas, para cá, para esse lugar onde só fazemos plantar, colher, lapidar e produzir. Talvez elas se espreguiçassem molemente em redes e abandonassem a necessidade de fazer sentido, misturando-se promiscuamente umas às outras, verdades com baratas, democracia com ameixas, felicidade com chapéus. Elas se esfregariam e gerariam filhotes engraçados, como verdades com cara de macaquinhos e braços de couve-flor. Talvez, ainda, corressem endoidecidas em múltiplas direções, espalhando-se e reproduzindo-se indiscriminadamente, assaltando os passantes e embolsando mais palavras, que, ao final do dia, se encontrariam todas para desovar os frutos dos roubos do dia: nomes aos lingotes, adjetivos quase todos para o lixo, neologismos que iriam para o baú de guardados, algumas relíquias no meio. Queria dizer o indelével e cumprimentar-nos, a nós que sustentamos esses dois anos como pequenos hércules que carregam o globo nas costas, impedindo, com nossa galhardia, que o mundo desabasse. Nós, afinal, é que somos essas palavras loucas e também sãs que atravessam as fronteiras do impossível, na direção de possibilidades que se divisam apenas delicadas no horizonte. Queriam dizer que nós, as palavras, vamos sim e clandestinamente, driblar os guardas da mesmice e saltar na direção do assalto, da preguiça e do que se perde sem intenção de reconquista.

Nós é que, mais do que os Beatles, aportamos num destino trágico e nós é que somos a mitologia de um tempo que se transformará. No quê, não sabemos,

Noemi Jaffe

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

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