Gol de quem, Verissimo?

16/11/2022

A Unisinos em Porto Alegre promoveu no último dia 10 de novembro mais uma edição da Semaníssima, em homenagem a Luis Fernando Verissimo. O tema deste ano foi Futebol e Copa do Mundo. Convidado pela universidade, Marcelo Dunlop leu esta crônica no evento.


 

Todo o povo envolvido com a Semaníssima até busca disfarçar, mas é impossível. A verdade é que precisamos confessar nossas paixões e preferências logo de saída: sim, somos todos Verissimo Futebol Clube.

E, como fanáticos pelo estilo e pelos livros do mestre, todos temos aquela frase do Luis Fernando que mexeu conosco, quando não mudou nossas vidas. A minha frase marcante do Verissimo não saiu em nenhum livro, nem sequer foi publicada nos jornais.

Ela acabou sendo falada por Verissimo para mim há uns anos. Estávamos no restaurante Barranco, célebre churrascaria que, por acaso, foi inaugurada precisamente em 1969 – no célebre ano em que o Verissimo zarpou de foguete até a lua e o Neil Armstrong fez sua estreia como cronista nos jornais, se não estou fazendo confusão.

Pois bem, exatos 50 anos depois, fui convidado para um jantar memorável, regado a caipirinhas de lima com a família Verissimo e amigos. Era uma segunda-feira, 9 de setembro, e eu me dirigia ao banheiro quando cruzei com Luis Fernando. Ele então proferiu a sábia frase que marcaria para sempre minha vida:

– Ô Marcelo, você vai lá em casa ver a final do Internacional, certo?

Balbuciei um “Claro, maravilha, como não”. Mas depois não consegui dormir por dois dias. Como seria o Verissimo torcedor? Faria alguma mandinga? Será que trocaria o saxofone pela vuvuzela? Estaria trajado com alguma camisa do Inter toda puída, por pura superstição? Usaria boné talvez? E eu, com que roupa iria para esta noite tão sonhada?

Na quarta-feira, relaxei. Apanhei umas cervejas no caminho, espiei nos jornais a escalação do time do professor Odair Hellman e parti. Optei por uma camisa de botão, cor goiaba, que qualquer pessoa bem intencionada tomaria por vermelha.

Toquei a campainha, dei um alô para a família e logo vi Verissimo se aboletar diante da TV, sozinho e concentradíssimo. Estava de suéter e meias puxando para o azul, o que estranhei. E não tirava os olhos do televisor, que estava ligado… na CNN americana. Definitivamente, Verissimo detesta mesas redondas, como já revelou em suas crônicas. Sobre elas, por exemplo, o escritor definiu:
“Meu medo é que tenha outra vida após a morte, mas que seja só para debater esta.”

Na sala, logo vi, não haveria debates calorosos, muito menos vuvuzelas. Lucia me informou que não convidaram mais ninguém. Pedro Verissimo, provavelmente prevendo o que seria aquele primeiro jogo da final da Copa do Brasil de 2019, entre Athletico Paranaense x Internacional, disse que precisava ensaiar suas canções. E pulou fora.

Verissimo trocou de canal 17 segundos antes do apito inicial. Lucia então veio oferecer um uísque, para combinar com a chuva fria e persistente. Verissimo aceitou e eu fui de cervejinha. Foi quando então deu-se a grande surpresa: talvez aflito com a decisão, Verissimo ficou absolutamente calado. 


Deve ter sido a solenidade da partida, sei lá. Eu então fiquei à espera de um gol, de um lance genial ou de alguma troca de bofetões, qualquer coisa, para Verissimo se soltar e eu tecer meus comentários.

Eu já tinha um roteiro pronto, inclusive.

De saída, pensei em pedir mais detalhes daquele Grenal de 1946, a primeira vez de Verissimo num estádio. Ele, um guri de 10 aninhos, foi de cadeira numerada, daquelas de assento de palhinha, com a família Bertaso. Verissimo jamais esqueceria de duas coisas: o doce cheirinho da grama e a atitude do zagueirão, um uruguaio de nome Beresi, que ao mesmo tempo lutava pela bola e piscava para uma torcedora lourinha. O que ele esqueceria rápido: o Grêmio venceu naquela estreia.

Depois, pensei em perguntar, afinal, se nas peladas da infância ele era mesmo bom de bola ou perna-de-pau.

Na sequência, pensei em elogiar toda a isenção, talento e profissionalismo do mestre, e recordar sua crônica em tributo a Renato Portaluppi, no dia seguinte ao Mundial de 1983 conquistado pelo Grêmio, texto simplesmente genial. Verissimo viu aquela partida ao lado de amigos gremistas, numa boa. Talvez calado, se bem conheço.

Pensei por fim em comentar sobre a Copa do Mundo de 2002, uma das mais marcantes das oito Copas que o mestre cobriu in loco. 

De tarde, Lucia e Artur Xexéo viam novelas em coreano e recriavam o roteiro e os diálogos. Na trama, viam um pai enfurecido com a filha pura que queria casar com um samurai aposentado. Luis Fernando, que já dera sorte no tetra em Los Angeles, viu o Brasil ser penta ao vivo, no estádio de Yokohama. Verissimo e Xexéo voltaram ambos apressados para o hotel, para escrever. 

Na estação de Sakuragicho, um senhor japonês tirou uma gaita do bolso, confirmou se a dupla era brasileira (“Brasil? Brasil”?) e começou a entoar nosso Hino Nacional. Antes que os dois derramassem lágrimas patrióticas, o gaitista emendou: “França?”. E tocou a Marselhesa na gaitinha. “Estados Unidos?” E solou o hino americano. Foi quando Verissimo se empolgou:

- Finlândia! Finlândia!
O japonês tocou lá alguma coisa, se era o hino finlandês Xexéo e Verissimo jamais ficaram sabendo.

Mas eu não falei nada disso. O jogo não ajudava, o 0 x 0 parecia petrificado no placar. Foi quando então lembrei de uma tirada genial do mestre, que eu havia lido numa crônica guardada na Unisinos, durante uma de minhas pesquisas.

“Esse jogo está me lembrando uma crônica sua sobre o Inter do Falcão, mestre. Era um time que se moldava ao adversário. A depender do jogo, jogava solto, livre e bonito de se ver como um pássaro. No jogo seguinte, atuava como um bicho rasteiro, truculento e implacável, pronto para esmagar o adversário tal qual a jiboia. E você escreveu: ‘Um time começa a ser campeão quando passa de pássaro a cobra sem qualquer embaraço genético.’”

E foi então que Verissimo sorriu, os olhos talvez úmidos, ao beber aquelas próprias palavras escritas em 1980. E eu virei minha cerveja, enfim satisfeito.  

Assim que o juiz apitou o intervalo, Lucia chamou para jantar e Verissimo saltou da poltrona com a agilidade de um goleiro de time sub-20. A comida estava divina e quase perdemos a hora. Verissimo então tamborilou na mesa e proferiu as sábias palavras:

– A bola vai rolar, e não posso deixar meus meninos sozinhos.

O segundo tempo foi mais movimentado. A família se ajuntou na sala, uma história atrás da outra, e saiu até gol. Mas era 11 de setembro, e quem marcou foi o. Athletico. 

Verissimo certamente pensou um palavrão, mas apenas abriu a boca num muxoxo de cinema mudo. Eu olhei para os botões da minha camisa goiaba e disfarcei.


Enquanto fui à geladeira, quase a levitar no fim daquela noite mágica, pensei no que eu queria realmente dizer. Certa vez um sábio cientista escreveu que o futebol e a arte subvertem o mundo racional, afinal nos discursos, tratados e salas de aula tudo deve ser dito em etapas, uma coisa de cada vez. No futebol, na arte, na poesia – e agora reparo, nas crônicas do Verissimo – as coisas são todas ditas de uma só vez.

E lembrei de uma das crônicas sobre futebol que Luis Fernando mais gostou de escrever. Sobre o povo dos estádios que vê o jogo em pé, ali da altura do gramado, todo apertado na geral  (do Maracanã) ou na coreia (do Beira-Rio).
Escreveu Verissimo:


“Um dia houve um jogo de portões abertos no Beira-Rio. Não me lembro por quê. Quem quisesse poderia sentar em qualquer lugar do estádio, até nas cadeiras. O coreano poderia sentar numa numerada e chamar o garçom que traz o uísque, nem que fosse só para vê-lo de perto. Mas, acredite ou não, tinha gente na coreia. Gente que, com o acesso a todo o estádio liberado, se mantivera fiel à coreia. Não eram coreanos por fatalidade, eram coreanos por convicção! O lugar deles era ali. Acho que foi nesse dia que eu desisti de entender o mundo. De transformá-lo eu já desistira muito antes.”

Obrigado, Verissimo, por nos ajudar a entender um pouco do futebol e do mundo, e talvez até, um dia, a entender nosso Brasil.

Marcelo Dunlop

Marcelo Dunlop é carioca, jornalista e escritor, e Luis Fernando Verissimo sempre foi seu grande ídolo que não veste calções ou chuteiras. Depois de ser seu leitor por 30 anos, Marcelo se orgulha de chamar Verissimo de colega: juntos eles têm 88 livros lançados - Luis Fernando tem uns 86, Dunlop tem dois. A camisa goiaba já foi eliminada.

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