Por Caetano Galindo
Tim Minchin é um gênio. Pronto. Ponto. Taí.
Ele toca um piano do demônio, canta direitinho (toca o piano do demônio ENQUANTO canta direitinho! Veja lá em “Mitsubishi Colt”, por exemplo), escreve letras com umas sonoridades que não ficam devendo nada aos bons rappers, compõe umas harmonias e umas melodias pra lá de lindinhas e… como se não bastasse isso tudo, é engraçado pacas.
Minchin, que é australiano, é representante de uma tradição bem forte no mundo anglófono (que vem forte desde Gilbert & Sullivan) e que aqui, fora, sei lá, o Juca Chaves, nunca teve muito gás: o cantor-cômico ou comediante-cantor. Longe da baixaria Mamonas Assassinas (sim, eu sei, eles morreram novinhos e isso é mega triste: não, isso não faz eles terem sido menos bostas), sofisticado pacas, em todos os níveis. E, no que me interessa aqui, um excelente exemplo de intraduzibilidade. Só pra mostrar que não precisa ser poesia hermética torre de marfim pra ser impossível, só pra dar um exemplo mais a fundo de uma coisa que eu já mencionei aqui também, que é o fato de que tudo se aproxima do intraduzível quando um texto tematiza a própria realidade, a própria materialidade da língua em que ele está escrito.
Vou dar uns exemplos a partir de uma única música (tem no youtube, claro), chamada "Prejudice". Preconceito.
É fucking brilliant.
Dizem que ela existe porque Minchin usava demais a palavra nigger no palco e, como se sabe: não rola. Você tem que ser membro da comunidade em questão pra usar sem problema. É como, sei lá, bicha?
A música começa com uma discussão sobre palavras tabuizadas e diz que uma delas, de apenas seis letras, tem mais poder que as espadas…
Aí ele soletra, e diz que a palavra em questão tem dois Gs, um I e um E, um R e um N… ele parece estar dançando em volta do tabu…
(Não vou nem mencionar que ele diz “a couple of Gs” e aí segue com “Jees”…)
E aí, depois de já quase três minutos de música e de suspense (será que ele vai dizer a palavra!), ele entra num groove mais funkeado no piano, começa a soltar uns yeah, uh, meio de rapper e se prepara pra atacar o refrão, que diz…..
Only a ginger can call another ginger ginger!
Ou seja, só um ruivo (como ele!) pode chamar um ruivo de ruivo. Porque, claro, agora você se dá conta, ginger é um anagrama perfeito de nigger.
E aí ele entra numa série louquíssima de piadas e trocadilhos com ruivos (os ruivos são espertos, diz ele, porque são “well read”, o que só funciona graças à homofonia entre lidos (read) e vermelhos (red); ele menciona os riscos da gingervitis, trocadilhando com gengivite, sendo que, claro, gengivas são “ginger” )… sério, é hilário e denso demais pra analisar tudo de uma vez aqui.
Mas, além desse detalhe totalmente intransponível na brincadeira ginger/nigger, quase no fim da música, quando o “suspense” meio que tinha deixado de existir (ele adora guardar esses “presentinhos” pro fim das músicas), ele vem com a ideia de que só os ruivos podem se chamar de ruivos, exatamente como only a ni… e rola uma prolongada nessa vogal… e você fica “pô, agora ele vai dizer!” e o verso termina sendo “só um ninja consegue pegar outro ninja desprevenido”.
Sem nem contar que, na pronúncia de um australiano, ninja rima perfeitamente com ginger.
Já imaginou traduzir?
E fazer caber na métrica?
E arrumar um ruivo pianista endiabrado pra cantar?
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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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