Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
É difícil caracterizar o sentimento que é escrever sobre O tempo das cerejas, de Montserrat Roig, na mesma semana em que, pela primeira vez na história brasileira, militares são condenados à prisão por uma tentativa de golpe. Ainda que os agentes da ditadura militar (1964–1985) sigam impunes em nosso país, a atual condenação recai sobre um conhecido general que fez parte da linha dura. Não consigo separar essa notícia do romance catalão, que aborda as feridas individuais e coletivas causadas pela ditadura fascista de Francisco Franco (1939–1975), porque nosso país também (e ainda) elabora os traumas de um regime autoritário.
A ausência de justiça, aquartelada em absurdas leis de anistia tanto na Espanha quanto no Brasil, dificulta essa elaboração, mas não a impede, porque temos memória. Conhecemos histórias (várias, mas não todas; apesar das tentativas de seu apagamento antes e ainda hoje) tanto das agressões ditatoriais quanto das opressões cotidianas, perpetradas por civis que pactuavam com os ideais do regime. O romance de Montserrat Roig, publicado pela Companhia das Letras em nossa tradução quase 40 anos depois de seu lançamento na Catalunha, ficcionaliza essas histórias. No entanto, a autora catalã não focaliza as narrativas que são mais conhecidas pelo público brasileiro, como as de militantes e guerrilheiros, mas as de gerações de pessoas comuns que viveram a ascensão brutal do franquismo após a Guerra Civil e a queda negociada da ditadura, tendo como núcleo a família de Natàlia Miralpeix.
Os dramas da família Miralpeix são um retrato do pacto entre o Estado fascista e a Igreja Católica, incutindo moralismos violentos no controle dos vínculos sociais, e dos rasgos — materiais e subjetivos — que são o seu resultado. Com maestria na composição do enredo, a autora evidencia que não é preciso a ordem de um militar ou de um padre para que a opressão seja exercida, porque a própria sociedade a reproduz em nome do Estado e da religião e a naturaliza, ali mesmo, dentro de casa. Vimos isso na Catalunha sob o jugo espanhol, vemos isso no Brasil: o controle do corpo, da mente e da alma — que recai ainda mais duramente sobre mulheres e pessoas dissidentes. Diante desse emaranhado, a fuga de Natàlia se mostra inevitável, mas quando é possível o seu retorno, ela passa a se reaver com essas histórias e acessa camadas que sequer imaginava.

Quando me vi diante da oportunidade de traduzir este romance ao lado de Meritxell Hernando Marsal, nossa parceria de trabalho se mostrou ainda mais necessária: não apenas pela riqueza dessa aliança, mesclando saberes entre línguas e culturas que afinamos cada vez mais ao longo de nossa trajetória — traduzindo Maria-Mercè Marçal, Marta Orriols e Eva Baltasar —, mas também pela investigação conjunta que essa tradução demandou. Como Meritxell bem comentou em seu texto para o blog, a narrativa de Roig é de uma preciosidade material incomensurável, contando com objetos e detalhes muito específicos de época, além de várias personagens que pertencem a distintas camadas sociais e/ou que habitam a mesma com diferentes nuances.
Nesse labor a quatro mãos, encaramos os dilemas lexicais de tradução, como gorgs que poderiam ser igarapés, mas cuja intensidade de captura faz mais sentido como vórtices; os alimentos e pratos típicos, como ensaïmadas e escudela; as expressões (que em alguns casos apresentam imagens do outro lado do espelho: vermell com un pebrot é vermelho como um pimentão); algumas inevitáveis notas de tradução para auxiliar no contexto; mas, principalmente, as nuances sintáticas que enganam pessoas desavisadas no trânsito entre algumas línguas de raiz latina. Foram meses em que dialogamos através dos arquivos ao lado de nossos outros trabalhos, permeados pela comoção, porque essa leitura atenta, tão própria da tradução, se desdobra ainda mais quando feita em parceria. Para quem traduz, é uma felicidade poder conviver com um texto de tamanha qualidade como é O tempo das cerejas, porque a prosa de Montserrat Roig, para além de sua importância inventiva em diálogo com a História, é de uma artesania muito envolvente — densa em sua complexidade, mas também fluida em seu ritmo e sonoridade.
Por fim, deixo meu agradecimento a Meritxell, porque se hoje podemos falar sobre a imensidão que é a prosa de Roig em nossa experiência compartilhada, é porque trilhamos um caminho de aliança feminista na literatura e/m tradução desde 2017, pouco antes de me tornar sue orientande no doutorado em Estudos da Tradução na UFSC. Que o pacto dessa sintonia política, junto das contribuições de Camila Berto e Silvia Maximini Felix na preparação, tenha contribuído para reverberar as vozes d’O tempo das cerejas. Lembrando sempre: sem anistia.
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be rgb (Breno Guimarães Barboza) escreve, traduz, revisa, oferece oficinas de escrita e lê cartas de tarô. Pesquisou sobre os estudos feministas da tradução e/m queer~cu-ir no doutorado na UFSC. Traduziu só e em parceria textos de literatura e não ficção do inglês, espanhol e catalão. Foi tradutorie residente (set./out 2023) do Institut Ramon Llull em Barcelona e convidade pelo Instituto Cervantes Berlim como autorie traduzide por Odile Kennel na Latinale (2021). Já publicou 5 livros e 3 plaquetes. Mora em Curitiba desde 2023, onde faz umas pontas como assistente de palco em eventos drag.
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É primavera de 1974, e Natàlia Miralpeix acaba de voltar a Barcelona depois de mais de uma década vivendo entre a França e a Inglaterra. O regime franquista está próximo do fim, e uma atmosfera de mudança cultural e política impregna a cidade. Os mais novos já vislumbram o despertar de um novo tempo, enquanto a geração mais velha ainda lida com as marcas da Guerra Civil.
Todos na família de Natàlia – o pai, a tia, o irmão, a cunhada e o sobrinho – estão buscando dar sentido à vida, num momento em que passado e presente parecem irreconciliáveis. Em meio a esse turbilhão, a protagonista também precisa lidar com lembranças da juventude, quando viveu uma paixão que a transformaria para sempre.
Publicado pela primeira vez em 1976, O tempo das cerejas conquistou o sucesso do público e da crítica e se tornou um livro incontornável da literatura de língua catalã, traduzido internacionalmente e que vem sendo redescoberto por uma nova geração de leitores. Sua virtude reside na habilidade de Roig de entrelaçar o pessoal e o político, construindo uma narrativa polifônica em que a voz de cada personagem é parte de um mosaico de uma época que está prestes a deixar de existir.
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