Por Caetano Galindo
Como eu tinha mencionado antes, esse O livro de Aron, de Jim Shepard, que deve sair daqui a pouco, além dos problemas previsíveis da tradução de uma narrativa em primeira pessoa, feita por um adolescente do gueto de Varsóvia (tipo representar uma voz virgem de literaturices, marcada diacronicamente por esses 70 anos de distância, sem ao mesmo tempo alienar os leitores mais jovens que são parte relevante do público aqui… e sem também apelar pra algum tipo de “populismo” discursivo), foi o texto que me apresentou ao drama da tradução (ou não tradução!) de um trocadilho multilíngue de língua incerta e não sabida!
What…?
Pois é. Isso mesmo.
A questão é a seguinte, e pode ser um belo exemplo não só das diversões da tradução literária, mas também do tipo de cabelo em ovo que os tradutores são meio que condicionados a enxergar: num dado momento da história, o narrador (o Aron do título: aliás, altas discussões entre este que vos bloga, o scefigno André Conti e a santa Ciça Caropreso, que preparou o texto, pra definir se traduzíamos o nome do rapaz e se aportuguesávamos seu apelido hebraico, Shemaiá…) diz que um outro personagem vivia o tempo todo repetindo uma oração que, por causa da sua sonoridade, lhe gerou o apelido de cheap fish.
Parece simples, né? A gente traduz tudo, inclusive o “peixe barato”. E pronto.
Mas começa que se tratava de “sonoridades”. E NADA que neste mundo soe como cheap fish soa a algum outro ouvido como “peixe barato”. E, pra te falar a verdade, tem mais aqui nessa peixaria: porque você vai ler o livro em português, eu estava lendo em inglês, mas a convenção da narração nos faz supor que a realidade linguística daquelas pessoas era em polonês… Mas, além de tudo, eles eram judeus…
Então de repente a coisinha fácil (fui conferir: até o google tradutor verte tranquilinho cheap fish por peixe barato) está agora nestes termos: a oração do rapaz (que ele pronuncia em iídiche? em hebraico? em polonês?) soa como “peixe barato”, ou cheap fish, ou tanie ryby?
(Aliás, essa última, a polonesa, me VEIO do google tradutor: eu, como todo xadrezófilo [por causa de um programa de computador famoso] até sei que RYB é o radical eslavo de peixe, mas…)
Deu pra sacar?
Algo, dito em uma de três línguas possíveis soa como algo dito em uma de duas. O que o autor quer? Quebrar a quarta parede e se referir aos sons do inglês quando aquele povo não teria bases pra fazer trocadilho na língua de Shakespeare? E, se sim, isso me autoriza a fazer a mesma coisa e buscar os sons no português? Aí o apelido do cara ia ser “tipo fixe”? (Brincadeira…)
Ou ele quer dizer que a oração soava como tanie ryby, e aí eu, como ele, só traduzo, e o apelido do cabra é mesmo Peixe Barato. (Lembrando ainda que o som final podia ser o do iídiche, bilik fish….)
E a curiosidade, agora? Como fica?
Escrevo pro autor?
Mas era meio que a única dúvida que ainda me irritava… E tem uma coisa de orgulho profissional…
Então vamos fuçar.
O que eu soneguei até aqui é que o autor menciona (de novo, em tradução? Isso não aparece nas traduções inglesas da bíblia ou dos textos hebraicos… eu fui ver…) a tal oração do rapaz. Ela seria ‘let our days be multiplied’… ‘que se multipliquem nossos dias’.
Então vamos aos alfarrábios digitais.
Fuça que fuça e eu (bronco irreligioso) topei com o Deuteronômio 11: 21 (‘para que se multipliquem vossos dias’) que numa edição hebraica transliterada em alfabeto romano (porque eu não sei ler hebraico) me deu justo uma palavra que lembrava aquele radical RYB, de peixe…
E o Deuteronômio, claro, além de ser livro canônico entre os cristãos, também faz parte do Tanach, da Torá, entre os judeus.
Tá bom pra vocês?
Pra uma piadinha, um detalhe do livro?
Me satisfiz que o tal trocadilho era entre hebraico e polonês, e que o autor estava “traduzindo” o polonês tanie ryby por cheap fish.
Se lá traduzia ele, pois traduzo eu cá.
“Peixe barato” ficou.
Porque, claro, agora as legiões de leitores que quiserem ir a fundo vão poder encontrar aquele versículo do Deuteronômio…
:)
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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.