Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Martha Batalha

Lendo outro dia o fundamental Os cem melhores contos brasileiros do século, eu encontrei uma frase que ficou comigo por muito tempo. Não é daquelas que nascem para epígrafe, como essa da Elsie Lessa:
“Qual o hormônio, e destilado por que glândula, que dá a uma mulher o gosto de engomar, tão alvamente, a sua toalha bordada para a bandeja do café?”
Ou daquelas que merecem ser sublinhadas, como a definição de genialidade brasileira de Alcântara Machado:
“Olhem a mania nacional de classificar palavreado de literatura. Tem adjetivos sonoros? É literatura. Os períodos rolam bonito? Literatura. O final é pomposo? Literatura, nem se discute.”
A frase que me conquistou é muito mais simples. Tem apenas quatro palavras, que são:
“O padeiro está nu.”
O padeiro está nu, diz a vizinha para o homem nu, ao encontrá-lo no corredor do prédio tentando cobrir o corpo com uma bisnaga. Depois disso a vizinha grita, chama a polícia, outros vizinhos aparecem, o homem nu esmurra a porta de casa e a esposa finalmente abre.
A cena está no breve conto "O homem nu", de Fernando Sabino. Li a história pela primeira vez quando tinha 11, 12 anos, naquela coleção que marcou uma geração, a “Para Gostar de Ler” (se não me engano, a capa tinha um menino colocando um filhote de tartaruga para nadar na pia). Nos anos seguintes eu me esqueci do conto, mas jamais me esqueci da sensação de ler o conto, que foi boa.
Trinta anos depois eu reli, sem a ingenuidade da primeira vez -- às vezes eu invejo aquela menina que lia sem a carga de conhecimento que tenho hoje. A menina que lia só por prazer, e se surpreendia por tão pouco. O fato é que, na segunda leitura, eu vi muito mais do que um conto engraçado.
Vi um conto que reflete o que eu mais gosto na literatura brasileira. É breve (os escritores brasileiros não são de escrever calhamaços), é leve e despretensioso. É pouco mais que uma piada, é um conto com jeito de crônica.
É também um conto sem excesso de palavras. Que diz o que tem que dizer no lugar e na hora certos -- e por isso meu amor à frase “o padeiro está nu”.
Quando essa frase aparece o leitor abre um sorriso, e esta escritora, sabendo que o leitor abrirá um sorriso, deseja escrever frases assim. É a minha busca diária. A frase perfeita, no parágrafo perfeito, na história perfeita. A frase simples.
É muito, muito complicado escrever simples. Dá um trabalho danado. E o Brasil conseguiu, neste sentido, criar algumas gerações de estrelas. João do Rio, Machado de Assis, Luiz Edmundo (que merece urgentemente uma reedição). Vinicius de Moraes e Antônio Maria, elogiado num perfil de Vinicius como “um dos primeiros a liberar a língua do seu engravatamento vernacular”. Rubem Braga, que resume numa crônica o motivo de muitas outras: o que ele quer mesmo é escrever uma história muito engraçada, para fazer rir a moça doente, a cozinheira e o casal mal-humorado. Fernando Sabino, que deseja fazer uma última crônica tão pura quanto o sorriso de um pai humilde, celebrando o aniversário da filha com três velinhas sobre um pedaço de bolo de padaria. Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Porto (que dizia que Paulo Mendes Campos, outro fera, penteava o cabelo com ventilador). E nem dá para citar todos, certamente deixaria alguém de fora, embora seja bom terminar com alguns contemporâneos: Verissimo, que uma vez se definiu como um dinossauro político, e que eu defino como um dinossauro das crônicas -- o homem é imenso, e sabe tudo, há muito tempo. Ruy Castro, que quando escreve é como se só tivesse entre ele e o leitor uma mesinha de botequim -- como você consegue, Ruy, como? Cora Rónai e Zuenir, Tati Bernardi e Antonio Prata. É muita gente boa.
É interessante escrever sobre estes autores de onde moro, na Califórnia. O preço da mudança de país é sentir no peito saudades constantes. Esta saudade aparece na minha escrita, e na minha estante. Eles estão aqui comigo, todos estes que citei, e muitos outros. Eles me contam do Brasil, me ensinam sobre parágrafos e me deixam tranquila. Preenchem as prateleiras acima dos livros sobre técnicas de escrita, o que diz muito sobre sua função. Porque, quando penso na frase perfeita, não são os livros teóricos que me vêm à mente. Mas o jeito de escrever dos meus mestres brasileiros.
Martha Batalha nasceu em Recife em 1973, e cresceu no Rio de Janeiro. Jornalista com mestrado em literatura pela PUC-Rio e em Publishing pela NYU, trabalhou em jornais como O Globo e criou o selo Desiderata, hoje da Ediouro. Vive na Califórnia. Em abril, lançou pela Companhia das Letras seu primeiro livro, A vida invisível de Eurídice Gusmão.
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX
Como se preparar para a Conferência do Clima, que este ano acontece em Belém