Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Érico Assis

Hipster Civil War, de Caio Oliveira.
Na capa de A Passeio, Daniel dos Santos e Ciro Gonçalves estão à beira de um precipício. Um diz: “Vamo nessa?”; o outro: “Bora!”. As HQs de Daniel são recortes autobiográficos sobre seus 25 anos: conversas sobre namoro, sobre trabalho, sobre descobrir responsabilidade. Pontos na vida recente em que ele tomou choques de realidade.
Ciro, o parceiro de Daniel no precipício, também faz recortes da própria vida. As experiências como desenhista de feira -- “e aí, vão querer que eu faça bonito ou parecido com vocês mesmo?” -- parecem autobiografia fantasiada. “Um dia seremos como o amigo que foi embora” termina em uma foto de uma turma de crianças em que a legenda provavelmente conte a vida do Ciro, mas também a minha, a sua: “1- Brigamos por alguma bobagem que fiz. 2- Está de mudança. 3- Perdemos o contato. 4- Tá em cana. 5- Trabalha na concorrência. 6- Casou comigo. Somos todos amigos.”
Caio Oliveira é conhecido pelos mash-ups. Às vezes são de personagens: Turma da Mônica com Batman, Angry Birds com Birdman, Street Fighter com X-Men, Thor com Chapolim. Às vezes são misturas de temas: All Hipster Marvel, sua coletânea sobre heróis que já usavam barbicha e fedora antes de ser cool, circula entre fãs globais de Homem-Aranha e companhia. Panza, a última história de Sancho Pança, mash-upa Dom Quixote e Frankenstein não só pelo humor, mas entrando na alma do fiel escudeiro.
São Paulo reúne a maioria dos quadrinistas do Brasil. Bom, São Paulo provavelmente reúne a maioria de qualquer coisa do Brasil. Mas é São Paulo, capital, que concentra o que se tem de indústria do quadrinho no Brasil, com estúdios, agentes que intermedeiam trabalho com editoras estrangeiras, cursos de quadrinhos, as principais editoras. São Paulo ainda tem o Proac, edital que financia 20 HQs por ano -- mas só de autores que morem no estado (o que já foi motivo de mudança para quadrinistas).
O Rio de Janeiro tem uma turma respeitável de quadrinistas. Belo Horizonte também, com influência forte dos quinze anos de Festival Internacional de Quadrinhos. Brasília, Curitiba e Porto Alegre têm suas cenas, também organizadas em torno de um e outro evento, gibiteca, cursos, estúdios. Recife e Salvador juntam alguns nomes. São cidades que também têm editais de financiamento de projeto cultural, vez por outra uma HQ.
O quadrinho brasileiro é bastante focado em produção independente e amizades. Geralmente se sabe que aquele cara mora no Butantã, que aquele outro mora em Porto Alegre, que aquela menina acaba de se mudar pra cá de Natal, que a outra é de Brasília.
Daniel dos Santos e Ciro Gonçalves moram em Palmas. Caio Oliveira, em Teresina. Tocantins e Piauí não costumam aparecer entre, digamos, “capitais do quadrinho brasileiro”. Na busca por quadrinho nacional, é comum ignorar esses pontos que fogem dos núcleos que já se conhece, dos eixos óbvios. O mais comum é supor que, se o cara faz quadrinho tão bom, deve morar ali no Morumbi.
Já se falou que a internet descentralizaria todos esses eixos e núcleos. Não é bem assim. Acho que foi num livro do Steven Johnson que li que toda cidade tem o mesmo percentual de gente que se dedica a atividades específicas, tipo lepidopterologia, investimento em debêntures e fazer quadrinhos. A vantagem dos grandes centros está na proporcionalidade: se 0,00001% da população de qualquer cidade é quadrinista, São Paulo tem 120 figuras que se reúnem, trocam projetos, combinam parcerias, montam estúdios, constroem indústrias.
Pelo mesmo percentual, Teresina teria 8 quadrinistas e meio. E se esses oito e meio combinam uma pizzaria, metade não vai, dois dominam a conversa falando de cerveja e os outros dois resolvem virar bancários. Pelo mesmo percentual, Palmas teria 3 quadrinistas e histórias parecidas.
Números fazem a diferença quando uma carreira como esta, que depende de investimento pessoal e muito estímulo. E só o estímulo dos tutoriais e likes da internet não basta. Ter uma cena, uma massa crítica, faz grande diferença.
Mesmo que os números não ajudem, Daniel, Ciro e Caio se mobilizaram e mobilizaram outros. A passeio é patrocinada pela Prefeitura de Palmas e os trabalhos do Caio são fruto parcial do Núcleo de Quadrinhos do Piauí -- que conseguiu organizar mais que 8 quadrinistas e meio.
Aquele proverbial encontro na pizzaria, felizmente, deu muito certo. Trabalhos que nem os deles fazem a gente torcer por mais encontros que nem estes, em outras Teresinas e Palmas por aí.
Érico Assis é jornalista, tradutor e doutorando. É o editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (Editora Narval). Mora em Florianópolis e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Também escreve em seu site pessoal, A Pilha.
Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/
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