Eu estive em Copenhagen nas “férias”.
A Sandra, minha mulher (eis uma coisa que me agrada escrever: “a Sandra, minha mulher”…) foi dar uma palestra na Københavns Universitet*; eu acabei participando de uma reunião da Sociedade James Joyce… Mas no fundo a gente turistou umas duas semanas.
Recomendo.
Quando a gente fechou a viagem, tipo, lá em setembro, ainda este que vos blogueia, que aparentemente não tem mais o que fazer da vida, decidiu aprender um pouco de dinamarquês (já disse isso aqui, né?).
Língua bem louca.
Cheguei lá conseguindo ler placas, menus, descrições de obras em museus, texto de imprensa… Essas coisas. Falar? Quase nada. Ouvir? Menos que nada. A fonologia do dinamarquês foi desenvolvida pelo diabo e implementada pelo cara que praticava bullying com o Diabo no primário.
Quase trinta sons vocálicos. Eles têm até um fonema que ninguém decide se é um fonema mesmo. Uma vez vi um alemão descrevendo a sensação de ouvir dinamarquês como resmungo-resmungo-ALEMÃO-resmungo-resmungo-ENGASGO-resmungo-resmungo-INGLÊS…
A bem da verdade, eu acabei descobrindo que, tipo, a diversão número um dos noruegueses é rir da incompreensibilidade da fala dos vizinhos (de fronteira e de idioma: as duas línguas são, no papel, mais próximas que o português e o espanhol). Olha isso aqui, por exemplo.
Mas me diverti. Me divirto ainda. Não parei de estudar. Li Karen Blixen, que nunca tinha lido. Descobri Pontoppidan. Curiosei por Helle Helle. Veremos.
Mas o fato, claro, é que ninguém precisa aprender dinamarquês pra viver na Dinamarca. Há quem more há anos em Copenhaguen sem saber a língua. De verdade. Todo mundo por lá (tipo todo mundo MESMO) fala inglês. Quase tudo é bilíngue. Tem muita coisa em inglês até na televisão.
A bem da verdade, quando você comenta com eles que está aprendendo dinamarquês, invariavelmente a primeira reação é um “Hvorfor det?”. Tipo “Pus quê?”
E eles sempre emendam com “é uma língua de cinco milhões de falantes” etc… O que já diz bastante do povo mais fofo da terra, que é na minha experiência o único que DIMINUI o número de habitantes na hora de arredondar.
A vida deles é fundamentalmente multilíngue. Expostos desde sempre ao inglês, morando a meia hora da Suécia (com outra versão alternativa do mesmo idioma), vendo televisão norueguesa, estando na fronteira da Alemanha (língua aparentada, mas mais distante…).
A tradução, pra eles, é uma operação diária.
E editorialmente não é diferente. Cheguei esperando encontrar, por exemplo, pouca tradução de literatura inglesa, já que todo mundo pode ler no original. Mas nem.
Eles já têm duas traduções do Ulysses, por exemplo. Com uma terceira a caminho. A bem da verdade, a história da primeira tradução é bem interessante e conhecida entre os joyceanos: o cara passou a vida inteira revisando o seu trabalho, e no fundo produziu TRÊS versões bem diferentes da mesma tradução.
Eles traduzem de tudo, e bastante. Traduzem até do norueguês e do sueco.
Mas o que realmente me chamou atenção nessas traduções é que com frequência o crédito nem menciona a palavra “tradução”. O que aparece na folha de rosto é o título da obra, em dinamarquês, o nome de quem escreveu, e aí a expressão “på dansk ved” e o nome de quem traduziu.
E o que quer dizer aquilo?
“Em dinamarquês com.” O texto traduzido, afinal, é mesmo uma espécie de parceria. E pelo menos pra mim parece que essa fórmula tanto põe a tradução no centro do palco quanto sublinha a autoria original, mesmo agora, neste novo texto, apenas escrito em dinamarquês com ajuda de outra pessoa.
De novo, por mim, povo mais fofo do mundo.
*Desculpa o cabotinismo ortográfico, mas desde que eu li Asterix e os Vikings, com sua genial solução pra marcar graficamente o “sotaque” dos escandinavos, esses ås e øs são fofos demais pra mim.
* * * * *
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
Twitter