Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Traduzir uma sentença pode ser definido simplesmente como dizer a mesma coisa com outras palavras.
Eu vivo insistindo, inclusive, que em muitos casos o dado “trocar de língua” nem é o mais complicado. E vivo insistindo, também, que o que se diz na tradução é ideal e funcionalmente “a mesma coisa”. Sim, plenamente, ao contrário do famoso “quase a mesma coisa” proposto no livro do Umberto Eco.
Agora, traduzir uma sentença literária já se reveste de mais especificidades. Trata-se de dizer a mesma coisa e, além disso, buscar um equivalente de determinado efeito estético, muito mais sutil, muito mais delicado que a mera semântica.
Dizer a mesma coisa; e com estilo.
E tradutores de literatura, claro, apreciam essas novas constrições. São elas que deixam o jogo divertido.
E o que dizer da tradução de poesia metrificada e rimada?
Trata-se, agora, de dizer a mesma coisa (e esse dado não pode ser subestimado), com bastante elegância, com um número de sílabas pré-determinado, terminando tudo com um som pré-escolhido (a rima) e não raras vezes tendo ainda que escolher repetições estratégicas de consoantes e/ou vogais (aliterações e assonâncias) ao longo do trajeto.
É tipo um jogo de palavras-cruzadas com regras determinadas por Satã. Ou Deus. Depende do gosto do freguês.
A poesia de T. S. Eliot, que vêm me ocupando desde o ano passado, é um caso todo especial. Afinal, ele é conhecido justamente por ser um dos poetas que definiram certo padrão de verso livre e branco, quase prosaico, para a poesia moderna. Ao mesmo tempo, ele é o cara que famosamente afirmou que não existe verso livre; que todo verso aparentemente sem metro na verdade manifesta uma tensão, um constante desafio de um padrão que se insinua, contra o qual o poeta trabalha.
E desde o seu primeiro poema, a incrível Canção de amor de J. Alfred Prufrock, com seu jogo permamente em torno do pentâmetro jâmbico (o decassílado da língua inglesa), e sua infinidade de rimas de todo tipo, misturadas a versos brancos, até o coroamento de sua obra, com os Quatro quartetos, onde de novo rimas se misturam a um discurso prosaico de tom elevado, em que metros se insinuam sob um pulso aparentemente irregular, ele viveu de sondar esses limites e de usar, como poucos, os recursos formais da poesia de língua inglesa.
E isso é complicado pro tradutor.
Primeiro porque essa relativa liberdade de forma sublinha o discurso, o “o quê”. A poesia de Eliot diz coisas, e usa tons específicos, dialetos, sotaques. Perder isso tudo em nome da rima e do metro é amortecer sua voz. Mas a poesia de Eliot também diz certas coisas graças a seu jogo de rimas e metros. E perder isso tudo em nome da fala clara é matar seu som.
Em segundo lugar, isso é difícil pura e simplesmente porque as regras são menos claras. Se te dão um soneto decassilábico de esquema ABBAABBACDCDCD, ora, pode ser trabalhoso, mas o gabarito de análise do original e da tradução é claro. Se no entanto você tem que deduzir o sistema e a forma, tem que deduzir SE existe mesmo forma ou estrutura relevante num dado poema, a coisa fica bem mais tensa.
Some-se aquele “primeiro” a este “segundo”, e bem-vindos sejamos à maçaroca que anda sendo a cabeça deste tradutor nos últimos meses. Eu ando pensando metricamente, ando contando sílabas e “sublinhando” aliterações em tudo que ouço… Ando vendo e ouvindo Eliot por tudo.
E meio que é isso mesmo que os grandes poetas sempre fizeram…?
Hmmm…
Agora é só esperar que a tradução, que deve sair ainda este ano, cumpra ao menos este papel, e entregue aos leitores brasileiros um Eliot novo, mais poderoso e mais contagiante, que diga o que tem que dizer e o diga com estilo, da forma “certa”, com a “forma” certa.
Oxalá.
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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