
Série Hades & Perséfone, de Scarlett St. Clair, chega ao Brasil pela Editora Bloom!
Os três primeiros volumes já estão disponíveis
Capa americana de Rusty Brown / © Pantheon Graphic Library (Divulgação)
Então.
Estou há meeeeeses lidando com a tradução dessa obra-prima que é o Rusty Brown, de Chris Ware. Lidando com ela. Não necessariamente traduzindo há meses. Veja bem.
Primeiro, veio o privilégio de receber os arquivos em primeira mão, antes mesmo do lançamento na gringa. Perks. Depois, a boa notícia egoísta embutida na má notícia de que o lançamento não ocorreria a toque de caixa: mais tempo para tentar encaixar a tradução na rotina da universidade e no caos absoluto em que se tornou, ao menos em alguns momentos, a vida de todos nós nesse ano do corona.
Depois de renegociados os prazos, veio a já tradicional dinâmica caetânica de ir pensando: “faltam x meses… ora, ainda dá pra começar semana que vem”, enquanto o meu cargo administrativo na universidade, especialmente, ia comendo minha identidade, minha paz de espírito e minhas horas, minutos e dias de dias de dias…
Quando a proverbial água bateu na bunda, descobri, pra minha imensa sorte, que a única coisa que eu tinha deixado adiantada (a tradução de capa, contracapa e abas internas das duas, detalhadíssimas e entupidas de detalhes) simplesmente evaporou na troca do computador por um modelo mais novo. Sumiu.
E aí toca separar fins de semana e uma ou outra noite de segunda a sexta pra trabalhar intensamente num projeto que de maneira bem curiosa junta o melhor e mais intenso do trabalho com prosa literária (especialmente a refinada representação de oralidade) com estranhas preocupações parecidas com as da tradução de poesia (será que cabe esse monte de palavras naquele balãozinho ali da página 274?). E o que dizer da tradução de onomatopeias (assunto pra próxima coluna!)?
Mas, acima de tudo (e era aqui que eu queria chegar), como lidar com a memória da minha mãe?
Aqui neste arquivo onde eu vou escrevendo essas colunas desde…. 2013(?) eu dou uma busca e vejo que a primeira menção ao nome de Chris Ware está num texto que escrevi logo depois da morte dela. E agora, traduzindo seu livro seguinte, eu me vejo o tempo todo lembrando das broncas que dona Iracema me dava quando me via lendo gibi.
— Você lê só as palavras! Lê correndo! Tem que ir aproveitando os desenhos, fica mais divertido.
Ela nunca me convenceu. Continuo via de regra leitor leviano, e não apenas de quadrinhos.
Mas hoje, mais velho, entendo bem melhor a ênfase dela no “dar-se o tempo” da leitura… Especialmente quando topo com a delicadeza da composição de Ware. Mas tive que lidar com isso durante a releitura de um dos melhores quadrinhos já publicados, enquanto me esforçava para não deixar de cumprir um prazo de tradução.
E como celebrar que a página 142 não tem texto e pode ser simplesmente deixada para trás quando tanta, mas tanta, tanta coisa acontece naquelas imagens mudas? E tão poderosas… Como deixar de me dar o tempo de ir efetivamente “lendo” em vez de traduzir contra o relógio?
Como é que eu posso brigar, depois de tanto tempo, dona Iracema, com a tua ideia que era tão correta?
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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