Chris Ware x Caetano Galindo - uma conversa sobre a tradução de Rusty Brown (Parte 1: Oclinhos)

27/04/2022

Por Érico Assis e Caetano Galindo

 

Chris Ware, autorretrato.

 

Em 2021, a Quadrinhos na Cia. publicou Rusty Brown, aguardada graphic novel de Chris Ware. Foi a primeira experiência de Caetano Galindo na tradução de histórias em quadrinhos. Galindo, que já traduziu a obra poética de T.S. Eliot e de Paul Auster, as músicas de Bob Dylan e de Leonard Cohen, o teatro de Tom Stoppard e uma e outra obrinha da literatura, como Graça Infinita de David Foster Wallace e o Ulysses de James Joyce, teria encontrado em outro formato, os quadrinhos, um páreo em termos de sofisticação, de desafio e de realização tradutória?

A convite de Galindo e do editor Emilio Fraia, eu, Érico Assis, fui o preparador” de Rusty Brown. Uso o termo entre aspas porque respeito os preparadores de verdade e porque pouco mexi naquela primeira versão da tradução, recém saída das mãos do Galindo. Vou me gabar pelo resto da vida, porém, de que tive algumas palavras nas decisões daquele quebra-cabeça tradutório que é a página 262 – a penúltima de Lint”, terceira história de Rusty Brown –, pois sugeri algumas soluções que Galindo graciosamente aceitou.

(Também descobri que o Galindo tem ojeriza à palavra tetas”.)

Queria conversar mais sobre a página 262, sobre Ware e a literatura e sobre a primeira experiência na tradução de quadrinhos de um tradutor com farta experiência em outras linguagens. Conversamos sobre muito mais que Rusty Brown. Eu e Galindo combinamos uma hora de Zoom para bater esse papo, que aconteceu em 13 de janeiro deste ano. A transcrição desta hora segue abaixo e nas próximas quatro colunas. Asseguro que o papo foi de apenas uma hora, mas uma hora de papo com o Galindo rende livros.

 

 

Rusty Brown, página 6.

 

Érico Assis:

Queria começar com uma pergunta bem prática. Você está acostumado a traduzir prosa e eu queria saber da parte operacional física”: se você coloca o livro original de um lado e a tradução do outro, se cola tudo no mesmo documento do Word, se usa um software de apoio à tradução…?

Caetano Galindo:

O ideal tem sido esse: documento [do original] aberto do lado esquerdo da tela, documento do Pages aberto na página do lado direito. E trabalho direto. Foram poucas vezes que eu recebi os originais em .doc e deu pra colar no processador de texto.

Agora, por exemplo, traduzi Alice [no País das Maravilhas]. Peguei no Gutenberg o trecho da primeira edição, já colei no documento e trabalhei num documento só. Mas em geral eu trabalho com esses dois: um visualizador do original e outro do meu texto.

Nenhum outro software, absolutamente nada.

 

E como você fez com um quadrinho?

(longo suspiro)

Quadrinho é um inferno, né. Tinha um pdf, mas o pdf era incrivelmente pesado, como você sabe…

[Obs. do Érico: o pdf do miolo era um arquivo de 564 mb, cem vezes maior que um típico PDF de livro; meu computador também não gostava dos zooms e outros manuseios nas páginas].

Especialmente a capa, aquele envelopinho da capa, foi um inferno. Cada movimentação que você tinha que fazer dentro do pdf… você tinha que abrir o pdf bem grande pra poder enxergar. A cada movimentação você tinha que esperar a merda recarregar.

Enfim: foi um pdf.

 

Mas, na prática, você colocou o pdf de um lado e o documento de tradução do outro? Usou outra tela?

Eu não lembro exatamente… Acho que eu fiz metade de cima, metade de baixo da tela. acho que na maior parte do tempo foi assim.

 

Você usa um iMac? Com aquela telona de 27 polegadas?

Sim, mas é menor. Vinte e quatro, eu acho.

 

E não usa outra tela?

Não. Só um monitor. Me arrependi. Se começasse a fazer quadrinhos sempre, eu usaria outra tela.

 

É como eu faço aqui: dois monitores [ligados no mesmo computador].

Eu não uso mouse. Uso daqueles trackpads. E ali tem uma série de gestinhos que facilitam a vida. Em alguns momentos eu lembro que deixei o pdf em tela cheia e o Pages em tela cheia e eu conseguia alternar entre os dois como se estivesse virando página. É super rápido. Um tapa no trackpad e ele trocava de documento, um gesto super rápido. Eu acho que em boa parte do tempo eu trabalhei assim.

 

Quando eu comecei a fazer a preparação, também achei o arquivo pesado. Cada vez que eu abria o pdf ou trocava de página, era algum tempo de espera. Aí resolvi colocar o pdf num iPad e deixar o iPad do lado do computador. Qualquer coisa que eu precisasse aumentar, era só fazer a pinça com o dedo. Foi o meu jeito. Mas ainda é difícil.

Aliás, os únicos comentários que eu tenho recebido de leitores que estão lendo Rusty Brown têm a ver com isso: como a letra é pequena!

Eu estou lutando contra meu oftalmologista para não começar a usar multifocal, mas estou no último gás possível. Da próxima vez eu vou ter que ceder. Então minha vida, pra conseguir enxergar as coisas com meus óculos normais, já não é fácil. E isso aqui [apontando para Rusty Brown] é um inferno. Eu, como leitor, não ia…

[Um braço alheio passa pela cara de Galindo. É sua esposa, a também tradutora e professora Sandra Stroparo.]

A Sandra está rindo da minha cara por causa dos óculos. Mas eu, como leitor, não ia gostar desse negócio, não… É muito apertadinho, né?

 

A gente pode mandar a conta do oftalmo pro Chris Ware?

Pode. Deve ser por isso que ele usa aqueles oclinhos.

 

Rusty Brown, página 88.

 

Eu tenho impressão que a letra não precisava ser tão pequena. Me parece coisa de designer, que adora uma letrinha minúscula.

Enquanto eu traduzia, fiquei pensando se não tem uma coisa… uma coisa meta”. Um projeto de te fazer olhar bem de perto, de gerar um problema, de não facilitar sua vida. Tipo: não é uma coisa de relaxe, recline e siga feliz. Não. Vai dar trabalho. Você vai ter que fuçar, vai ter que largar o que está fazendo e olhar aquilo mais de perto.

Essa coisa das letras brancas em fundo preto, bem pequenas… Porra, parece sacanagem de oftalmologista. Aqueles longos trechos da parte de ficção cientifica, com muito texto, tipo… aquilo não é user-friendly.

E no fundo me parece que isso é um pouco do projeto dele. Não é para ser user-friendly, no sentido da passividade. É pra você ter trabalho mesmo. É pra te ensinar a prestar atenção. É pra te ensinar a ver as coisas em detalhe.

Porque ele vai e mete uma página inteira que só tem um detalhe, uma nevasca e uma pessoinha parada pra atravessar a rua. Mas o teu olhar tá em outro lugar, teu olhar tá em observar cada floquinho desses – literalmente cada floquinho, que é a pegada da HQ. Eu acho que tem uma coisa de treino, de sacanagem mesmo, que é pra te fazer olhar praquelas páginas de uma maneira diferente. Pra te ralentar, pra te fazer prestar mais atenção.

 

Tem uma coisa que ele faz em outros quadrinhos… não lembro se no Rusty Brown também. Ele faz você virar a página de lado para ler. Você tem que mexer o livro, fisicamente. As letras estão de lado ou de cabeça para baixo e você tem que virar o livro.

Mas isso de obrigar o leitor a ter que forçar os olhos não encaixa bem com a falta de pretensão do Ware. Ou pelo menos na despretensão que ele passa em entrevistas e tudo mais. Ou você diria que se encaixa e essa despretensão é só fingimento?

Falta de pretensão, eu acho… Olha, sim, em termos de intelectualização, de cabeciscmo e tal, ok. Mas eu acho que o Ware tem um projeto muito claro. Não só aqui, mas também aqui.

E tem a coisa do floco de neve. Não é à toa que ele começa com isso. Ele começa com a ideia de, ó: tudo é muito diferente, muito variado, muito interessante, desde que você ponha no microscópio. Se não, é tudo igual. Desde que você olhe em muito detalhe, desde que você preste muita atenção. O livro começa textualmente com essa história dos flocos de neve. Visualmente, começa com uma capa que você tem que ficar virando, revendo e participando e respondendo os exercícios… O livro começa já de cara te dizendo: olha, você vai ter que prestar atenção e vai ser no nível no detalhe.

Então, não sei em que medida isso desmente uma ideia de falta de pretensão. Até não vejo um grande problema. A ideia é “olha aqui: isso é para te ensinar que todas as coisas podem valer, desde que você preste atenção, desde que você olhe de perto.”

Não sei se eu venho com a cabeça muito contagiada do [David Foster] Wallace, especialmente do Wallace n'O Rei Pálido, essa ideia de que nada é chato desde que você preste a devida atenção. E aqui [em Rusty Brown] é essa ideia: vidas comuns, pessoas ordinárias, mas… preste muita atenção, olhe bem o que está acontecendo que você vai encontrar alguma coisa.

E aí essa coisa da letra pequena faz algum sentido, eu acho. Eu falo especialmente por mim porque sou um leitor muito apressado. Eu leio muito rápido, eu sou apressado mesmo e sempre fui um leitor de quadrinhos muito apressado. Lembro da minha mãe me dizer: poxa, você tem que parar e olhar as figurinhas, você tem que ver o que os desenhinhos dizem. E eu só queria saber como a história acabava.

Pra mim, foi um baque. Tipo: não, nesse caso aqui, não adianta querer ler rápido, não adianta querer adiantar, porque não importa muito onde vai chegar.

É o caso do Jordan Lint: a gente sabe onde vai acabar. Depois que se vê as primeiras páginas, eu sei muito bem onde vai acabar, todo mundo sabe o tempo todo. Mas o interessante é ir contra esse espírito.

 

A conversa continua na próxima coluna.

 

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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