Leia a introdução de “Iguais e diferentes”, de Regina Madalozzo

11/06/2024

Iguais e diferentes, da economista Regina Madalozzo – livro recém-lançado pela Zahar –, discute os muitos impactos que o preconceito e a discriminação exercem sobre a vida das mulheres na economia hoje. Com dados e exemplos diversos coletados em mais de duas décadas de pesquisa dedicadas ao tema, Madalozzo explica como a economia feminista se ocupa em olhar os problemas econômicos e as soluções propostas considerando os efeitos diferenciados para homens e mulheres.

Os números apontam que o Brasil é um país que ainda possui alto nível de discriminação salarial contra as mulheres. Os resultados do Relatório de Transparência Salarial 2022 mostram que as mulheres não negras recebem, em média, 79,6% do salário de um homem não negro. E, as mulheres negras, somente 53,2% com relação a eles. Somos o 5º país do mundo em número de feminicídios, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde. Por fim, o Brasil é o 5º país no ranking de casamentos infantis, de acordo com relatório da Unicef em parceria com a ONG Girls not Brides.

Abordando temas que seguem invisibilizados e deixados de lado nos debates e políticas públicas socioeconômicas, com dados do Brasil mas também de outros países, a autora analisa estas e outras questões – igualmente fundamentais e urgentes.

A economia feminista nos permite analisar causalidades que só são percebidas a partir de um contexto específico de gênero.

A seguir, você pode ler a íntegra da introdução do livro. Iguais e diferentes: Uma jornada pela economia feminista já está disponível, em edição física e e-book!

***

Introdução

Em 1975, mais especificamente numa sexta-feira de outubro, 90% das mulheres islandesas tiraram um dia de folga. Embora algumas pessoas denominassem o movimento como “greve”, o termo não foi utilizado, a fim de conseguir agrupar mulheres de diferentes estratos sociais e políticos. O dia de folga foi debatido amplamente entre mães, filhas, amigas e, em 24 de outubro, elas cruzaram os braços por 24 horas e foram para as ruas. Não fizeram tarefas domésticas, não cuidaram das crianças nem se dirigiram para o trabalho. As islandesas fizeram manifestações em locais públicos, onde discursaram tanto mulheres envolvidas na política quanto donas de casa e acadêmicas. 

Com a ausência do trabalho feminino, as escolas não conseguiram abrir — a maior parte do corpo docente era composta por mulheres — e os homens ou ficaram em casa com seus filhos ou os levaram para o trabalho. Mas não foi somente a ausência das professoras que fez com que o dia fosse desafiador… Muitas lojas não abriram por não ter vendedoras ou caixas, o serviço telefônico foi interrompido e todas as atividades com concentração de mulheres como mão de obra foram prejudicadas. Os supermercados tiveram seus estoques de salsicha — comida rápida e prática — esgotados. O que começou como “o dia de folga das mulheres” terminou sendo chamado “a longa sexta-feira”,1 pois o dia foi realmente comprido para todos aqueles que estavam sentindo falta do trabalho, muitas vezes invisível, que as mulheres desempenhavam.

A Islândia é considerada há muitos anos o país com maior igualdade entre os gêneros.2 Mas não foi sempre assim… Somente no ano seguinte ao “dia de folga” foi aprovada uma lei coibindo a discriminação salarial contra as mulheres. Embora elas votassem havia décadas, menos de dez mulheres haviam ocupado cadeiras no parlamento islandês até aquela data. Cinco anos depois da longa sexta-feira, Vigdís Finnbogadóttir foi eleita a primeira presidente mulher da Islândia.

Muito mais do que uma simples história, a trajetória da Islândia na questão de igualdade de gênero mostra como os movimentos reivindicatórios na luta contra discriminações e os diferentes obstáculos colocados para mulheres podem se refletir em mudanças que levem de uma sociedade tolerante com desigualdades de condições e de oportunidades para outra onde existam equidade e respeito às características individuais das pessoas. E, mesmo com os evidentes avanços da sociedade islandesa com relação a questões de gênero, em 2023 — exatamente 48 anos depois da longa sexta-feira — as mulheres decretaram uma nova parada de 24 horas para protestar pelo não cumprimento das metas de equidade de gênero no país. Mesmo na Islândia muito ainda precisa ser feito.

O Brasil é um país extremamente desigual em muitos sentidos. Algumas vezes somos questionadas: será que não deveríamos buscar uma justiça distributiva antes de pensarmos na questão das mulheres? Quando indagada, minha resposta é: não. Lutar por igualdade de tratamento entre pessoas de diferentes classes sociais, diferentes gêneros ou cores/ raças diversas não são agendas concorrentes, ao contrário: elas se complementam e deveriam ser encaradas em um formato interseccional. E, nesse ponto, é importante termos muito cuidado. Isso não significa necessariamente que todos os problemas tenham o mesmo grau de urgência. Comparar uma mulher que está passando fome por falta de trabalho com outra que está empregada mas passa por discriminação salarial sinaliza que o senso de urgência com relação a uma ação imediata para resolver cada uma dessas questões é diferente. Entretanto, ambos os problemas são graves e inevitavelmente importantes para quem por eles passa. Fato é que ser mulher acaba sendo um adicional na vulnerabilidade em qualquer situação social.

É nesse contexto que surge um tipo de análise econômica diferenciada: a economia feminista. Foi a partir do olhar para essa subárea da economia que desenvolvi minha pesquisa, por duas décadas, como professora e acadêmica. Com base nessa forma de encarar o tema ampliei meu olhar — e o daquelas pessoas que estiveram comigo — para as diferentes possibilidades dos efeitos de modelos econômicos.

A economia feminista não se limita a estudar efeitos teóricos ou práticos de ações econômicas em geral, mas as causas e consequências da desigualdade de tratamento para um público muito específico: mulheres. Com muitas linhas teóricas diferentes — características das próprias vertentes feministas —, a economia feminista nos permite analisar causalidades que só são percebidas a partir de um contexto específico de gênero. Se na economia tradicional o “homem econômico” representaria qualquer indivíduo tomando decisões a respeito da alocação de horas de trabalho e lazer ou decidindo a melhor forma de usar seus recursos financeiros, a partir da ótica feminista, ser um homem ou ser uma mulher carrega diferentes fatores para a decisão em si. Tratar o “indivíduo econômico” sem entender as especificidades de gênero ou cor/raça, por exemplo, é ignorar fatores sociais e até mesmo psicológicos que influenciam de maneiras diferentes as pessoas.

Em economia, tradicionalmente o indivíduo é responsável por suas escolhas: quantas horas trabalhar no mercado remunerado, quais bens comprar, quando e quanto poupar etc. Dentro da economia feminista, essa liberdade de decidir permanece. Entretanto, tão relevante quanto a possibilidade de escolher é nos darmos conta de que as pessoas estão inseridas em um contexto maior — social, econômico, de relações raciais e educacionais —, que implica limitações não previstas nas modelagens econômicas tradicionais e que impacta fortemente o resultado dessas escolhas individuais para diferentes grupos sociais. Assim, ser uma mulher ou um homem tem impacto na decisão de quantas horas dedicar ao emprego, ou de ter ou não filhos, e quantos.

Quando fui convidada a escrever este livro, me deparei com a necessidade de optar entre uma visão estritamente acadêmica do tema ou trazer, junto com ela, elementos que ajudassem a tornar tangíveis os motivos pelos quais falar de economia sob a ótica feminista era importante. Assim, ao discutirmos diferenças salariais, por exemplo, conseguimos um olhar mais profundo quando, além de percebermos as estatísticas e os números, também damos atenção ao fato de que a base para a diferença de remuneração entre homens e mulheres começa na infância. Ela se inicia na oferta de brinquedos e é perpetuada nos comentários em sala de aula e fora dela sobre o quanto as meninas são “dedicadas”. Alguns elogios encobrem preconceitos que se sedimentam na forma como essas meninas e mulheres se enxergam como profissionais. Consequentemente, fazem com que as “escolhas” sejam enviesadas, atravessadas por fatores nem sempre tão racionais quanto a economia tradicional esperaria.

Ao mesmo tempo, questões sociais mais amplas — como violência doméstica e aborto — têm uma implicação muito maior na vida das mulheres que na dos homens: a violência contra as mulheres é condenada nas esferas pública e privada, entretanto as estatísticas apontam que ela não necessariamente está retrocedendo; a escolha de ter ou não filhos passa pelos desejos pessoais e pelas condições particulares do momento em que essa gravidez ocorreu, e quem carrega a criança em seu corpo por nove meses inevitavelmente sofre as maiores consequências desse fato. A forma como a sociedade sinaliza a importância de termos filhos passa por permitir que as pessoas que têm a condição e o desejo de gerar seres humanos também recebam o respaldo legítimo para continuarem a fazer suas escolhas de trabalho e de vida independentemente de passarem por uma ou mais gestações. Isso inclui licenças parentais, garantia de emprego, proteção contra a violência dentro e fora de casa, eliminação de fatores discriminatórios nas empresas e na sociedade e muitas outras questões que trataremos ao longo dos próximos capítulos.

Discutir os temas caros à economia feminista significa trazer à tona alguns incômodos que muitas vezes são silenciados pela tradição ou pela naturalização de um lugar inferiorizado para as mulheres. Na minha experiência pessoal e na minha escuta sobre a vivência de muitas outras mulheres, leva um tempo — talvez longo demais — para nos darmos conta de que ainda não ocupamos o mesmo lugar de importância que os homens em nossa sociedade. Somos assediadas quando participamos do cenário político, quando lutamos pelo direito de decisão sobre nossos corpos, quando reivindicamos tratamento não discriminatório no mercado de trabalho. Ou seja, sofremos violências diárias, em menor ou maior grau, até mesmo quando somos privilegiadas socialmente. Já é chegada a hora de abrirmos essa caixa de Pandora dos temas que estavam nos amarrando nesse lugar desconfortável da desigualdade de gênero e, abertamente, conquistarmos nosso devido lugar. 

A igualdade deveria nos unir não só em nossa condição humana, mas também nas oportunidades, nos direitos e deveres. Nossas diferenças de gênero, cor/ raça, opinião, gosto — entre outras — são necessárias e muito bem-vindas para nossa própria individualidade. Somos todos iguais em muitas questões e, ao mesmo tempo, diferentes em tantas outras. Entretanto, o que nos distingue não deveria ser motivo para discriminação, preconceito ou perspectivas limitantes de trabalho, renda e condição de vida.

Marie Shaer, resenhando A Feminist Dictionary, de Cheris Kramarae — com quem compartilho a Universidade de Illinois em Urbana-Champaign como alma mater — e Paula Treichler, professora emérita da mesma universidade, definiu feminismo como “a noção radical de que as mulheres são seres humanos”. Que possamos ser tratadas como seres humanos de forma integral. Mesmo que essa seja uma ideia considerada radical.


1No momento em que escrevo (segundo semestre de 2023), um documentário islandês está sendo produzido para relatar os fatos que ocorreram na longa sexta-feira. O nome é The Long Friday. O trailer está disponível.

2Dado do World Economic Forum, no Relatório “Global Gender Report” de 2023.

"A igualdade deveria nos unir não só em nossa condição humana, mas também nas oportunidades, nos direitos e deveres", afirma Regina Madalozzo (Foto: Julia Mataruna)

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog