
As três palavras mágicas que eu finalmente disse à minha mãe
Abraham Verghese, autor de "O pacto da água", conta como se conectou com sua mãe
Por Odorico Leal
Recebi o convite para traduzir O pacto da água no começo de 2023. Aceitei com certa trepidação: nunca tinha traduzido um romance tão longo. Pela extensão da obra, o prazo demandaria certa dose de generosidade, pois nunca se sabe o que padecerá o tradutor ao longo de quatro ou cinco meses. Por outro lado, Abraham Verghese não escreve em um inglês esotérico; embora magistralmente trabalhado, contendo muitos momentos de força poética, seu estilo evita grandes arroubos de sintaxe ou elaboração frasal. O objetivo de Verghese é contar uma grande história, estripulias estilísticas ficam em segundo plano. Levando isso em conta, o prazo não precisaria ser tão generoso, certo? Errado. A verdade é que nenhum texto é simples. As dificuldades de tradução são imprevisíveis e surgem por todos os lados, como goteiras em uma casa de telhado velho. O tradutor vive ensopado, lutando para que as letras na página não desmanchem sob o aguaceiro digno das monções indianas. O prazo, então, precisava ser generoso — para que fosse também realista. E foi.
Passei, então, alguns meses de 2023 visitando todas as tardes o sul da Índia. O pacto da água é uma saga envolvendo várias gerações de uma mesma família, tendo como esteio a figura da inesquecível Grande Ammachi, a pequenina matriarca de Parambil, que na abertura do livro encontramos prestes a se casar. Ela tem doze anos de idade, é o começo do século XX, e acompanharemos essa história até 1977 — um arco que vai da Grande Ammachi à neta Mariamma. Enquanto a Grande Ammachi estabelece um doce matriarcado em Parambil, Mariamma virá a se tornar a primeira médica da família. Para que isso aconteça, muitas coisas mudarão na Índia, e acompanhamos essas mudanças, sempre guiados pelo exímio narrador de Verghese.
As dificuldades de tradução são imprevisíveis e surgem por todos os lados, como goteiras em uma casa de telhado velho. O tradutor vive ensopado, lutando para que as letras na página não desmanchem sob o aguaceiro digno das monções indianas.
Para o tradutor, o principal desafio é não atrapalhar esse narrador. Em Verghese, a história é a protagonista. Claro, há muitos registros estilísticos distintos, desde diálogos bem coloquiais a momentos de tensão poética em que a linguagem ganha ares bíblicos, e o tradutor precisa acompanhar essas modulações. Mas, de modo geral, pode-se dizer que a linguagem aqui tende à certa transparência.
Há exceções: ao introduzir o personagem de Digby, o jovem médico escocês, por exemplo, há breves erupções do inglês tal como falado em Glasgow; aqui, sim, Verghese destaca bem a variação linguística, optando por toques de oralidade radical. Nesse caso, uma opção tradutória seria recorrer também em português a certos expedientes que simulassem nesses trechos pontuais uma espécie de dialeto; concluí, contudo, que com isso só chegaríamos a um duvidoso efeito de exotismo, sem sugerir de modo algum as peculiaridades das variações linguísticas de Glasgow, por motivos óbvios; assim, embora me valendo de uma boa dose de coloquialismo, optei por manter a uniformidade de estilo e poupar o leitor de um arremedo impossível de sotaque escocês. Já no caso de Muthu, cozinheiro e criado de Digby em Madras, a variação linguística é parte indissociável da construção do personagem: Muthu fala um inglês rudimentar, com uma sintaxe precária; aqui, sim, busquei o mesmo efeito do original, jogando com um português igualmente rudimentar.
Dito isso, fora os problemas que mesmo as frases aparentemente mais simples acarretam toda tradução, o grande desafio em traduzir Verghese era lidar com as minuciosas descrições de procedimentos cirúrgicos. O próprio autor é médico, e em O pacto da água lidamos com três figuras da mesma profissão: Digby, o jovem cirurgião escocês; Rune, médico sueco que, depois de muitas perambulações e viagens, descobre uma vocação espiritual trabalhando em um leprosário na Índia; e, claro, Mariamma, que, como médica, será responsável por solucionar o mistério dos afogamentos que marcam sua família. As cenas cirúrgicas abundam, e nelas a linguagem tende a uma especificidade delicada que precisa ser honrada.
Por último, vale ressaltar que toda tradução é um empreendimento que envolve muitas cabeças e muitas mãos, e isso é ainda mais verdadeiro no que diz respeito a esta tradução de O pacto da água. Entre a tradução final que enviei para a editora e o texto que veio de fato a ser publicado, há milhares de pequenas alterações e ajustes que tornaram o texto incalculavelmente melhor, tanto que não posso falar de fato que a tradução seja minha; trata-se, na verdade, de uma tradução coletiva, em que meu texto original passou pelo escrutínio e a reescritura das preparadoras Gabriele Fernandes e Maria Emilia Bender, dos revisores Huendel Viana e Ingrid Romão e da editora Camila Berto.
Coletivamente, tivemos o prazer de trazer ao leitor brasileiro essa grande saga indiana, que, entre tantos méritos, entrelaça com maestria a tradição espiritual dos cristãos do sul da Índia e a medicina moderna, sempre com personagens muito bem construídos, cujas vidas em alguns casos acompanhamos da infância à velhice e dos quais nos despedimos com muito pesar, como quem se despede de velhos amigos.
Pintura de Amadeo Luciano Lorenzato que ilustra capa de O pacto da água, de Abraham Verghese.
Abraham Verghese, autor de "O pacto da água", conta como se conectou com sua mãe
Os bastidores da escrita de “O pacto da água”, de Abraham Verghese, num texto escrito pelo próprio autor
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