Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Pioneira no terror psicológico moderno, Shirley Jackson (1916 – 1965) foi influência para grandes nomes do terror. A autora ganhou notabilidade em 1948, com a publicação conturbada do conto A loteria na revista The New Yorker. Na ocasião, leitores furiosos enviaram cartas reclamando da "imoralidade" da narrativa, muitos cancelaram suas assinaturas e outros encheram Jackson de mensagens de ódio e ameaças.
Escrito em uma só manhã, o conto retrata uma pequena vila, semelhante à que a autora morava, e questiona a tradição da sociedade norte-americana, a violência coletiva e o conformismo social. Os personagens foram inspirados em seus vizinhos, representados como bárbaros.

Para além de A loteria, as histórias de Shirley nasciam do cotidiano e navegavam por diversos aspectos da ficção, revelando a fina membrana entre o real e o imaginário. Escreveu seis romances, duas memórias e mais de 200 contos, dentre quais 24 estão reunidos em A loteria e outros contos, única coletânea publicada enquanto Shirley Jackson ainda estava viva.
Escrever na década de 1950 tinha limitações. Jackson, que cuidava do lar e de quatro filhos, trabalhou um gênero literário muitas vezes associado a homens, o que implicava driblar convenções de gênero.
Essa realidade não passava impune às críticas de Jackson, refletidas em suas histórias como questionamentos — mais ou menos sutis — aos papéis de gênero da época. As demandas por romper padrões sociais, rejeitando o papel tradicional da mulher e buscando liberdade sexual e autonomia, só surgiram uma década depois, entre os anos 1960 e 1970, com a segunda onda do feminismo nos Estados Unidos.
O tempo que Shirley passava reclusa no lar certamente afetou sua escrita. Ao driblar os afazeres domésticos para escrever, os contornos da casa ocuparam espaço em suas histórias: como em A assombração da Casa da Colina (1959) ou em Sempre vivemos no castelo (1962), suas personagens estão inseridas em grandes lugares mal-assombrados, mas nem por isso menos claustrofóbicos.
Enquanto somos sondados por manifestações fantasmagóricas, Shirley nos guia por um labirinto sombrio de medo e suspense onde tudo parece familiar, até adquirir traços tão perturbadores que apenas poderiam pertencer ao âmbito sobrenatural. O ambiente doméstico deixa de representar somente o isolamento e passa a refletir medos, fragilidades e angústias dos personagens, fazendo-os questionar a própria sanidade.
"A história de casa mal-assombrada mais próxima da perfeição que eu já li."
Stephen King
Na segunda metade do século XX, a psicanálise atingia seu ápice, aproximando-se de campos como arte e literatura e impactando significativamente a obra de Jackson. O cotidiano assombroso da autora ganhou contornos ainda mais macabros ao incorporar conceitos idealizados por Freud alguns anos antes. O homem da forca (1951), seu segundo romance, narra uma história assombrosa sobre loucura e obsessão por meio de uma personagem que teme a própria consciência. Aos poucos, torna-se difícil saber onde termina a realidade e onde começa sua sombria alucinação.
O fascínio de Shirley pela mente humana aparece mais uma vez em 1954, quando a autora publica O ninho do pássaro, obra inédita no Brasil, lançada pela editora Alfaguara, com tradução de Débora Landsberg. Com dores de cabeça e lapsos de memória, a protagonista deste livro vive num casarão excêntrico e frequentemente questiona a própria realidade, já que começa a ser perseguida por suas diferentes personalidades. A história se desdobra a partir do termo "estranho familiar", cunhado por Freud, que se refere a algo que, embora familiar, evoca sentimentos de estranhamento, medo ou desconforto, sensação que permeia toda a obra de Shirley Jackson.
"Os contos de Shirley Jackson estão entre os mais assustadores já escritos."
Donna Tartt
Usar um gênero literário subjugado para questionar o conformismo social diante das tradições no meio do século XX fez Shirley Jackson entrar para a história. A autora expôs os horrores do comportamento humano e tornou-os equivalentes às entidades perversas do mundo sobrenatural, indistinguíveis entre si na familiaridade do cotidiano.
Tão atuais como na época que foram escritas, as críticas de Shirley devolvem o fôlego de mulheres deslocadas e ansiosas, sufocadas por normas sociais, nos interiores de casas mal-assombradas que parecem ter vida própria. Este texto é um convite, mas também um aviso, para se aventurar pela obra da “rainha do terror”: mesmo abrindo as portas com calma, essas histórias são tão intensas que é impossível sair ileso.
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