ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio
1.
Como apresentar um livro? A Noemi Jaffe escreveu em sua newsletter que um livro não é sobre — “A literatura não é sobre. Ela é dentro, por, em, sob, com. Mas não sobre, porra” —, e é verdade. Embora, é claro, o sobre seja um recurso útil para o meio editorial, que precisa posicionar o livro no mercado, dar a ele alguma cara, sinalizar para o leitor onde vai tocar, apontar os temas sobre os quais vai falar.
Um livro fala? Particularmente não me atrai saber do que um livro fala antes de lê-lo. Parece uma impostura. Um livro só pode falar com quem o está lendo — porque fala coisas distintas a depender do leitor(a). Como se a conversa passasse a existir a partir da vida que a pessoa traz para o livro.
Então não vou dizer sobre o que é Do teu fantasma vejo só o coração, vou dizer que ele quer tentar uma conversa. Conversas nem sempre são fáceis e bonitinhas. São como a vida e talvez como os bons livros: imperfeitos, recheados de hesitações, de vontade de acertar que às vezes triunfam e que às vezes se tornam erros olímpicos. Essa conversa de que estamos falando, portanto, não serve para te passar um sermão ou uma mensagem, ou para dizer que é melhor ser assim e não assim, ou então para apresentar personagens com quem você precise se identificar moralmente. O livro não tem muito interesse por isso, para dizer que não tem nenhum; aliás, ele tem interesse exatamente pelo oposto disso: ele vai apresentar pessoas contraditórias, complexas, difíceis de conviver — é por isso que esses animaizinhos são fascinantes.

2.
Fanta é uma dedicada jovem evangélica que quer proteger o tio Eski, um homem solitário que enfrenta problemas com o álcool. Ela quer ser mãe, é a noção de família que aprendeu a cultivar na Igreja. O tio — vítima das vozes que escuta, uma espécie de antecipação do futuro — diz para Fanta algo que ela não gosta de ouvir. Entre a culpa e o afeto, Fanta se apaixona e percebe que o amor pode contrariar os dogmas que até então orientaram sua vida e seus desejos. Meio perdida, vai descobrindo quem é para além do que seus pais e seu meio enxergam. Adulta, se torna mãe, uma mãe que vai se aproveitar dos mesmos dogmas que despreza para controlar o filho e tentar trazê-lo para perto. Ele não quer estar perto dela. É um filho que tem suas diferenças com a mãe e não as ignora. Ele também tem sua ideia de família e, quando deixa alguém se aproximar pela primeira vez desde a infância, vai precisar ajustar as contas com essa ideia e com os fantasmas da mãe — e também com os seus. O filho começa um relacionamento que vai ser o estopim dos gestos de amor que afastam mesmo quando querem aproximar.
Todo mundo se comporta mal em algum momento da vida. Alguns nunca se livram da sombra de seus erros, e Fanta e o filho são expostos na internet, um lugar que costuma ser o avesso de uma conversa.
O que podemos fazer diante dos limites entre se aproximar e se afastar? Como se conformar com eles? O que acontece se a arte for usada como instrumento de correção? Se o tempo é um círculo, como escapar das histórias que voltam para nos assombrar? E, se escapássemos, o que diríamos a nossos fantasmas? Eu não sei. Esse livro não sabe. Não é um livro que quer ter a prerrogativa das respostas e das teses. Ele quer uma abertura. Quer enxergar pelos buraquinhos do lençol o que existe lá atrás, no coração.
3.
Ando pensando em tatuar a palavra estranho. É a primeira vez que assisto a Twin Peaks, e também ando meio espantado, maravilhado. A série condensa (ou expande?) toda a obra de David Lynch: manifesta as estranhezas dos sonhos, a obsessão pela transcendência dessa vida e de seus limites comuns, a imaginação deslumbrada pelo desconhecido, a intuição como caminho para chegar lá. Não posso dizer que foi influência porque acabei de escrever Do teu fantasma vejo só o coração bem antes de ver Twin Peaks, mas percebo que o romance tem essas mesmas inquietações.
“Isto é o passado ou o futuro?”, pergunta o homem sem braço ao Agente Cooper no Red Room. Eu poderia acenar para algo que ainda nem conhecia? Lembro da epígrafe que escolhi para o livro — é como se a promessa contida nela se cumprisse:

Nada é coincidência, porém, e que bom que eu só assisti a Twin Peaks agora, dias antes do meu romance chegar às mãos dos leitores. Gosto de pensar que a vida guarda essas surpresinhas para acender uma luz difusa na nossa cabeça, nos lembrando que o tempo é só mais uma de nossas criações esquisitas para atribuir algum sentido ao fato de estarmos aqui. É esse tipo de conversa estranha que Do teu fantasma vejo só o coração quer ter.

THIAGO SOUZA DE SOUZA estreou na literatura com Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai (Taverna, 2021), finalista do prêmio São Paulo de Literatura e eleito Livro do Ano pelo prêmio Jacarandá, do Correio do Povo. Vive em Porto Alegre e faz mestrado em Escrita Criativa na UFRGS. Do teu fantasma vejo só o coração é seu segundo romance.
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