Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Para este post, Jarid Arraes selecionou sete poemas de seu novo livro Caminho para o grito. Nesta obra, uma das vozes mais potentes da literatura brasileira contemporânea rompe o silêncio para abordar um tema doloroso: o abuso sexual, a pedofilia e as marcas profundas que carregam consigo.
Dividido em três partes que acompanham o processo de amadurecimento – da infância vulnerável à maturidade reflexiva –, Caminho para o grito constrói um percurso íntimo de elaboração do trauma, em que cada verso se torna um passo em direção à libertação.

os ponteiros
o tempo contado
na passagem
do medo
pequena a
inda não sabe
dizer as horas
sabe do tempo
que corre
e que se morre
deixando
se espatifarem
as lágrimas
sabe
que o tempo falha
e que às vezes
seu assombro
vem na madrugada
sem lençóis
que a protejam
o tempo então
finalmente para
***
o silêncio do sol
uma mão me toca
eu encolho
pequeno verme de inocência
sou parasita
de bruços sobre a cama
me alimento do meu medo
das pernas de menina
do universo
de repente
modificado
nunca mais
reconhecerei aquela garota
criança dedilhada no escuro
e pior seria
se fosse dia
e estivesse claro
***
condicional
como se captura
o instante
em que nos sentimos
libertas
eu tinha
treze anos
quando imaginei
a liberdade
e me pergunto
aos trinta e três
se uma mulher
pode
ser livre
se pode
arrepender-se
manchar a própria
honra
perder o rumo
trancar os olhos
tirar leite da pedra
que obstrui o seio
se uma mulher
pode ser livre
aos trinta
ainda arrastando
a ingenuidade
dos treze
***
ampulheta
que tivesse dito ontem
tempo de coisas ditas
hoje eu deixo cada sílaba
sibilo solto
voar por cima
tem dia que dura
dois dias
e depois nunca mais
pode durar
o prazo das frases
vai se acabando
e depois
não adianta
é perdido o esforço
de juntar
***
agitar uma bandeira
onde são presas
as tolas as fracas
as fortes as vontades
quando presas
pisamos na terra
da igualdade
***
vênus de willendorf
admiro
as mulheres fracas
que gotejam
o sangue atemporal
e caladas
expelem corredeiras
quase morrem
quase matam
as mulheres
fracas
serão sempre
as primeiras
***
anatomia
o corpo
conhece a rebeldia
e o sangue
é correnteza
de irreverências
o corpo
é eterna iconoclastia
suporta as marés
bravias
dança sobre espinhos
uiva
enquanto é dia
o corpo
conhece seus instintos
a fuga a luta
o abrigo
o corpo faz
da necessidade
o caminho perfeito
para o grito
***
Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nome, As lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.
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