Reencantando o mundo com a literatura indígena

26/11/2020

Por Aline Ngrenhtabare L. Kayapó

PARTE 2: Literatura indígena: espelho presente de memórias ancestrais

Nossos diversos paladares originários têm experimentado durante séculos o mesmo gosto opressor que desemboca nas tentativas reiteradas de nos silenciar. São tantas as tentativas de calar as nossas vozes que falar em literatura indígena, em pleno século XXI, chega a causar comichão nos ouvidos de muitos dos teóricos da literatura.  

Nossas memórias nos conectam com os nossos antepassados e possibilitam que nos expressemos em convergência com os sinais da ancestralidade. Assim interagimos com a sociedade nacional, muitas vezes ressignificando conhecimentos e instrumentos exteriores aos nossos costumes e tradições, estabelecendo a fronteira que evidencia que sempre estivemos aqui e que somos povos contemporâneos atrelados a outros tempos, ao tempo imemorial, ao tempo das nossas cosmogonias.

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Ilustração: Bicho Coletivo

A literatura que produzimos tem suas especificidades, não é igual aos gêneros literários canônicos produzidos e reproduzidos na academia. Quem escreve a literatura indígena já se encontrou com sua ancestralidade originária e consegue “fazer o papel falar”, como dizia o pai da líder Valdelice Veron, parenta Guarani Kaiowá.

Acredito que a literatura que produzimos colabora de forma significativa para dimensionarmos a vida no planeta, para depurarmos os rastros de escombros deixados pela racionalidade humana, que põe em risco a continuidade da vida no planeta.

Usamos as mesmas ferramentas - canetas, papéis, computadores e a escrita da língua portuguesa, que durante séculos nos foi imposta com grande violência - em favor do reencantamento das relações socioambientais, em favor da superação da crise que assola a comunidade mundial, criada pela própria humanidade.

 

"Florescer em meio ao lixo"

No entanto, a produção da literatura indígena é um desafio. Tanto por ser algo questionado por muitos acadêmicos atualmente, quanto pelo fato de termos que transformar conhecimentos historicamente desprezados e demonizados em textos escritos, que colaborem no repensar do antropocentrismo, das ações da racionalidade humana e da ideia de progresso levada a cabo pela comunidade mundial.

Esse movimento gerou uma situação em que as pessoas e grupos sociais caminham para uma situação de absoluto desencantamento, agravada ainda mais pela ambição, pelas vaidades e pela busca do poder a qualquer preço. Diga-se que esse comportamento “civilizatório” vem desumanizando os nossos povos, rotulando-nos de seres sem alma, infiéis, preguiçosos, mentirosos, bárbaros e inimigos do progresso.

Desde que os invasores pisaram nesse território sagrado, que para nós são os “jardins sagrados herdados por nossos antepassados”, como diz Ailton Krenak, resistir para existir é o que tem movido gerações, uma após a outra, e na nossa geração não é diferente.

Um dos ensinamentos mais marcantes em minha vida, nesse plano, foi ouvir uma frase da minha vovó do coração, Eliane Potiguara, quando me disse para “florescer em meio ao lixo”. Ensinamentos como esse são o que não nos deixa paralisar ou sucumbir. E pensando na trajetória de crises da humanidade, florescer no meio do lixo é um dos fundamentos da literatura indígena nos dias de hoje.

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Nas últimas décadas tenho me dedicado, entre tantas ocupações, a desfazer as armadilhas deixadas por um certo romantismo literário brasileiro, que romantiza nossas memórias históricas, nos torna sujeitos passivos diante da violência colonizadora e se apropria de nossos corpos, criando histórias fantasiosas. De tanto serem repetidas nas escolas e nos centros de pesquisas de altos estudos literários, elas ficaram no imaginário da sociedade como verdades absolutas, difíceis de serem desconstruídas. É a literatura a serviço do genocídio, tudo milimetricamente arquitetado e projetado, funcionando como uma grande orquestra que toca a música da extinção dos nossos povos. O que eles não esperavam é que nós saberíamos responder, falar e escrever:

Ó mulher, vem cá
que fizeram do teu falar?
Ó mulher conta aí…
Conta aí da tua trouxa
Fala das barras sujas
dos teus calos na mão
O que te faz viver, mulher?
Bota aí o teu armamento.
Diz aí o que te faz calar…
Ah! Mulher enganada
Quem diria que tu sabias falar!
("Denúncia", de Eliane Potiguara)

Quem diria, né? Estamos aqui, afirmando que somos a continuidade de Iracema, a parenta tabajara que José de Alencar afirma ter levado de bom grado um estranho colonizador para o meio de seu povo guerreiro, um invasor por quem ela teria morrido de paixão. No nosso imaginário e nas nossas memórias históricas, isso é inconcebível e repugnante! Ter compaixão, amor, paixão pelo opressor é uma história extremamente ideológica e genocida.

Em nome de Moema, que nunca morrerá, de Iracema e de tantas outras guerreiras que tombaram, cumpriremos a missão que nos foi concedida através de nossas ancestrais, de onde tiramos forças para regarmos essa terra com nossas lágrimas. Aramos esse território com nosso sangue, porque o Brasil foi construído sobre cemitérios, e seguimos desfazendo todos os nós genocidas e epistemicidas que foram dados nos mais diversos espaços do saber e do poder.

Temos disposição de dialogar e produzir uma literatura que auxilie os leitores, para que conheçam e sintam a leveza de uma memória ancestral genuinamente comprometida com a vida em todas as suas dimensões - seres humanos, rios, montanhas, vegetais, animais e seres não-humanos. Uma literatura que se manifesta prioritariamente pela oralidade e se desdobra de diversas formas, como danças, grafismos, cantorias, denúncias, lamentos, alegrias, angústias, afetos e escritas, entre outras manifestações.

Temos certeza de que a nossa missão é dar continuidade à luta de nossas antepassadas e mostrar para o mundo que outras formas de viver são possíveis, que é possível e necessário viver bem como menos. Por isso nossas resistências e provocações não cessam; queremos ajudar a reconstruir tudo o que foi devastado em favor da evolução humana.

Ainda que nos chamem de “falsos índios”, por ressignificarmos a escola, a universidade, a literatura e tantas outras instituições, seguiremos firmes, certos de que romperemos com as barreiras postas pela colonialidade e por um racismo estrutural e institucional que quer se perpetuar. Caminharemos no rumo de nossas microrrevoluções, inclusive na literatura.

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Visibilidade constitucional

É importante ressaltar que um grande avanço para a visibilidade e audibilidade dos nossos povos foi a Lei 11.645/08, que estabelece a obrigatoriedade do estudo/ensino da cultura e da história afrobrasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino. A literatura indígena é um dos principais instrumentos que tem o poder de colocar em prática as determinações da referida lei.

Claro que não apenas a lei, como a Constituição Federal de 1988 em seus artigos 231 e 232, bem como os direitos e garantias individuais e coletivas foram consequência de reivindicações sociais. Nós, povos indígenas, não estávamos alheios ou avessos a essas movimentações históricas nacionais e internacionais. Muitos dos nossos estavam presentes na constituinte, na ONU e em outros espaços, mostrando suas caras vermelhas e pretas, pintadas de urucum e jenipapo. E com a nossa força, chamamos a atenção dos brancos em favor das nossas demandas. 

É oportuno destacar o artigo 231 da constituição federal de 1988, que estabelece no capítulo “Dos Índios”:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

 

A constituição se tornou importante para nós, à medida que reconheceu a nossa existência e a dos nossos direitos. Por um breve momento nos enchemos de esperança, imaginando que as coisas poderiam ser diferentes de um passado de apagamentos constitucionais seguidos. Porém, desde a data da promulgação, já se passaram trinta e dois anos, e o que temos visto são lampejos de aplicabilidade em um campo repleto de formalidades e burocracias, que dificultam os processos de avanço nos campos da produção e compartilhamento de conhecimento por parte dos parentes, nos ambientes dentro e fora das aldeias.

Entendo que o projeto de igualdade é importante e que, a partir dele, a sociedade deve avançar no entendimento de que a igualdade não pode negar a diversidade dos nossos povos. Reconhecer a igualdade de direitos é não apagar nenhum sujeito ou grupo de pertencimento, principalmente os que foram historicamente invisibilizados pela história, pelo direito e pelas mais diversas literaturas.

A missão do que escrevemos é fazer com que nossas memórias alcancem  a sociedade dita brasileira, e que mesmo feridos pelo racismo estrutural, possamos propiciar possibilidades de diálogos através de interações, auxiliando na  compreensão da dialética que envolve a igualdade e a diversidade, e que ambas devem caminhar de mãos dadas.

[Na próxima sexta-feira, dia 4/12, confira a segunda e última parte do artigo de Aline Kayapó]

***

Aline Ngrenhtabare L. Kayapó é kayapó, descendente do povo Aymara. Escritora, autora na obra Nós: Uma antologia de literatura indígena (Companhia das Letrinhas), ativista no movimento nacional de indígenas mulheres. Fundadora do Wairaísmo - corrente ancestral-filosófica que se vincula à reflexão da resistência das indígenas mulheres no Brasil. É acadêmica do curso de Direito e, atualmente, secretária de comunicação regional do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba)?.

 

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