Era uma vez uma menina. Na escola, ela olhava ao redor e se sentia diferente, não entendia por que só o seu cabelo crescia para cima, enquanto o das outras meninas crescia para baixo. Essa menina é hoje Joana Mendes, escritora, diretora criativa, reconhecida com diversas premiações, entre elas Young Lions Creative Academy (2012), 30 jovens que estão mudando a comunicação (2019), Cannes Lions Juror (2022) o D&AD Juror (2022). E que escreveu com a também publicitária Mariana Santos o livro Manual de penteados para crianças negras, um livro que é muito mais do que sobre cabelos. Trata-se de um livro sobre representatividade, orgulho e autoafirmação.
Então, se disséssemos que este texto é apenas sobre um livro, não seria inteiramente verdade. É também a história de inumeráveis meninas, que, assim como Joana um dia, até hoje não se sentem representadas. O convívio social, a mídia, as propagandas, os desenhos animados, os filmes. Tudo isso são espelhos que ainda não refletem a diversidade que o mundo abriga. Mas, se hoje estamos aqui para contar a história deste livro, é porque as coisas têm mudado para melhor.
"Tranças boxeadoras", "Blow out", "Black power" e "Afro-puff" são alguns dos penteados apresentados no livro
Manual de penteados para crianças negras é um livro informativo, um guia passo a passo, um almanaque. Uma obra que nasceu do sonho compartilhado de duas mulheres, ambas publicitárias inquietas em transformar a história da representatividade. Um incômodo que vinha não só de olhar para fora, mas também para a própria família. Nascida e criada em Porto Velho (RO), Joana estudou durante a infância em colégios particulares de predominância branca.
"Ter cabelo crespo é muito difícil. Eu cresci com uma família que não sabia muito bem lidar com meus cabelos, apesar de todos sermos negros"
(Joana Mendes, autora)
“Meu cabelo na infância era bem curto. Minha mãe até tentou deixar o cabelo dela crescer pra me mostrar que meus cabelos também cresciam. Até que minha avó me levou pra alisar o cabelo em um salão de bairro. Eu odiei, chorei muito, mas só parei de alisar com 22 anos", conta Joana.
Cabelo é história, cultura e autoafirmação
Com uma linguagem pop – atraente para crianças a partir dos 7 anos e também para jovens leitores – Manual de penteados para crianças negras resgata a história do cabelo no mundo, e traz passo a passo de penteados e cortes, um convite para que também os adultos façam parte dessa revolução da representatividade, participando ativamente dos cuidados diários com os fios e a autoestima das crianças. As ilustrações da quadrinista Flávia Borges e o projeto gráfico de Marina Nina enriquecem ainda mais o manual com detalhes coloridos e passo a passo ilustrados que facilitam o aprendizado das leitoras e dos leitores.
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Black power, dreadlock, afro-puff, afrofuturista. Todas essas palavras nomeiam mais que estilos, são expressões culturais de afirmação identitária.
Por isso, uma das peculiaridades históricas que o livro traz é como o cabelo é um símbolo de toda uma construção subjetiva e coletiva dentro de variadas culturas. Em determinados grupos étnicos africanos, por exemplo, os cabelos contam de onde a pessoa veio. É o estilo dos penteados que comunica uma série de coisas a respeito da pessoa: se é adulto ou criança, se está apto a se casar e até mesmo se está passando por um luto. E hoje, o que o cabelo pode comunicar sobre alguém?
"O cabelo continua comunicando muita coisa, comunica um momento da vida, o que você quer se expressar, uma moda."
(Joana Mendes, autora)
Enxergar o passado, construir o futuro
O livro valoriza também a dimensão da ancestralidade em relação aos cabelos, ao destacar os vínculos afetivos familiares e sociais a partir do cuidado com os cabelos – trançando, penteando e inventando estilos. Como instigar nas crianças de hoje esse interesse por quem veio antes de nós? Segundo a autora, é a própria lacuna histórica causada pelo racismo que oferece a chave para o resgate das culturas negras pelas crianças de hoje.
"As crianças têm uma curiosidade inerente. Ao mesmo tempo, a história da população negra teve sua história apagada, o que faz com que toda pessoa negra tenha curiosidade em saber um pouco mais sobre sua própria história."
(Joana Mendes, autora)
“Eu, quando criança, sempre tive muita curiosidade sobre de onde vinham meus avós, porque meu cabelo era crespo”, conta a escritora. “A gente teve uma redescoberta dos cabelos e da nossa identidade racial. A população negra cresce a cada ano por que, cada vez mais, mais pessoas se auto-identificam como negras, os movimentos negros continuam defendendo pautas importantíssimas. Além disso, hoje em dia existem mais produtos voltados para os cabelos e mais informações. E, ah, também existe este livro”, brinca a autora.
Marco de representatividade negra na literatura informativa
Não havia até então no mercado literário para a infância um livro informativo completo sobre cabelos negros. Quando perguntamos qual foi a referência das autoras para criá-lo, elas contam que, para acertar o tom de como conversar com os pequenos, costumavam ler livros de receitas para crianças. “Nós assinamos com a Companhia das Letrinhas em 2019 e, desde então, pesquisei em diferentes sites em português, inglês e espanhol, comprei diversos livros e fiz um curso sobre cabelos com a Layla Maryzandra, do @fios.da.ancestralidade. Ela, inclusive, fez a leitura sensível do livro depois de terminado”, compartilha Joana.
É com esse desejo cuidadoso de interlocução afetiva com os pais, educadores e cuidadores que a obra de Joana, Mariana e Flávia sinaliza uma ponte para um futuro com maior diversidade racial no repertório cultural e imaginário social.
"Crescer com referências sobre o cabelo crespo é uma maneira de evitar violências."
(Joana Mendes)
“Muitas pessoas negras, de todas as idades, sofrem um sem número de violência relacionado ao cabelo, um reflexo de uma sociedade racista. Quando as crianças descobrem que seus cabelos contam histórias fantásticas, que cada fio se entrelaça em uma longa história, podemos tentar fazer com que um ciclo de violência se encerre”, defende a autora, que cita uma pesquisa que diz que as mulheres negras de 30 a 40 anos nos Estados Unidos são as que têm maior autoestima. “Isso acontece porque, desde pequenas, sua família disse o quanto elas eram importantes, inteligentes e generosas. Espero que o mesmo aconteça com a nossa próxima geração”. É o que deseja a Companhia das Letrinhas e este Manual de penteados. Que mais e mais crianças possam abrir um livro e se espelharem nele. Quem sabe assim o espelho não seja mais um lugar de exclusão, mas sim de autoafirmação.