As crianças nos surpreendem todos os dias com seu modo particular de ser. Coisas que parecem singelas, perto delas, podem se redimensionar. Na relação adulto-criança, ambos aprendem. Mas o que, afinal, aprendemos com a experiência infantil? O que a maternidade, paternidade e o convívio próximo com crianças nos ensina? Para pensar sobre isso, escutamos quem vivencia a infância em diferentes contextos: mães e pais em casa, psicólogos na rotina clínica, e educadores parentais na observação atenta sobre o desenvolvimento infantil.
Para a psicóloga e psicanalista Fernanda Lopes Sanchez Derballe, mais conhecida como Fê Lopes, o adulto cresce e recalca sua curiosidade, mas o convívio com os pequenos provoca o retorno ao novo a todo momento. “A criança sempre traz o inédito, porque as perguntas nunca vão ser as mesmas. Encarar a oportunidade de construir novas perguntas é fazer parte do desvelamento que a criança tem sobre o mundo. O que a criança mais reaviva no adulto é o próprio aprendizado de ter perguntas”, explica Lopes, que é especializada no atendimento psicológico de orientação psicanalítica, para crianças e adultos.
O adulto acha que precisa ter todas as respostas, mas a criança lembra que precisamos é de novas perguntas. (Fê Lopes, psicóloga)
A psicóloga Fê Lopes aposta em aprender com o tempo da criança. "O agora é um tempo de espera", afirma. Crédito: Divulgação
A lida com as emoções
Se há um ponto comum em quem vive perto das crianças é a percepção de que elas ensinam todos os dias sobre regulação emocional. Seja por que os adultos precisam ser o esteio para o que elas ainda não podem nomear e administrar, seja por que a leveza (e às vezes a intensidade) com que elas experienciam o dia a dia gera aprendizados a todos.
“Criar uma criança é uma ação que nos coloca em contato com coisas muito profundas e redimensiona absolutamente tudo o que a gente vive, nos faz sair de nós mesmas em direção não apenas delas, mas do coletivo, de outras mulheres, de outras crianças.” É o que compartilha a pesquisadora Ligia Moreiras, doutora em saúde coletiva e ciências, conhecida pela página @cientistaqueviroumae, na qual compartilha os aprendizados ativos da maternidade e oferece cursos e mentorias de educação parental, além de ser uma das autoras do livro Maternidades no plural (Fontanar).
Maternidade é uma sessão de terapia infinita: tem hora que a gente é sacudida, tem hora que recebemos acolhimento, tem hora que não sabemos o que estamos fazendo. Mas tem sido, para mim, imensamente transformadora. (Ligia Moreiras, pesquisadora)
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Para o jornalista Pablo Uchoa, criador e apresentador do podcast Histórias de pai para filha, o desafio da paternidade trouxe consigo a necessidade de confronto com a própria educação recebida por ele. “Uma das coisas que eu descobri foi que, embora eu seja uma pessoa com valores progressistas e quisesse ser, na minha cabeça, um pai moderno, o modelo que eu tinha internamente, a maneira como eu procurava solucionar os problemas, era um modelo tradicional, através da disciplina. Mas a autoridade, ela não é imposta, ela precisa ser conquistada”, conta.
Uchoa aponta para uma questão que acomete muitos pais: a dificuldade de lidar com a própria paciência (ou falta dela) em uma rotina assimétrica entre os tempos do adulto e da criança. “O que mais me surpreendeu foram as minhas reações e a minha maneira de lidar com as dificuldades normais que a gente tem com os filhos: o cansaço, a hora de dormir, os pitis, etc.”
Ser pai transformou demais a maneira como eu lido com emoções. Eu não estava preparado para a intensidade das emoções que eu ia sentir na paternidade. (Pablo Uchoa, jornalista)
Patricia Auerbach, autora dos nossos selos Companhia das Letrinhas e Brinque-Book, também é mãe, e costuma abordar em seus livros as diferenças entre o mundo da criança e o da criança. É o caso de seu livro mais recente, Eu também, que narra a relação de dois irmãos. "Conviver com meus filhos me fez mudar muito a maneira de experimentar a vida. Acho que não tem a ver com sentir as coisas de uma forma diferente, mas com permitir que pensamentos e interpretações fossem compartilhados de uma forma mais lúdica e brincante", conta a autora.
Escrever para crianças e jovens é minha forma de cura. Sempre escrevi pra desatar meus nós e elaborar meus sentimentos e angústias, mas transformar tudo isso em ficção e poder dar risada com as histórias que nasciam eu aprendi com as crianças. (Patricia Auerbach, escritora)
Para a Dra. Ligia Moreiras, é preciso antes de mais nada fortalecer-se como indivíduo para praticar uma maternidade saudável. Crédito: cientistaqueviroumae.com.br
Adeus, controle
Poder ter controle sobre os acontecimentos é um desejo bastante adulto. Porém, a rotina com as crianças muitas vezes faz essa vontade se mostrar uma ilusão. Como esse aspecto se transforma na parentalidade? Para Fê Lopes, o adulto busca o controle para aplacar suas incertezas e seus medos, o que na psicologia pode se traduzir em diferentes níveis de ansiedade.
“Nós, adultos, estamos cada vez mais antecipando o futuro, porque estamos cada dia mais ansiosos. Por outro lado, a criança vive em um tempo em que ela não pode fazer planos, então ela fica no presente. Quando a criança convida para brincar, ela nos chama quase para um estado meditativo.” Então, o que podemos fazer nesse cenário necessariamente de diferenças? A resposta possível parece ser uma só: aprender.
O benefício da troca é aprender e ensinar ao mesmo tempo. O adulto está na posição de guia, mas um guia falho. (Fê Lopes, psicóloga)
Já Patricia Auerbach compartilha que, quando se tornou mãe, perdeu o controle de quase tudo, mas que justamente aí é que encontrou a potência da maternidade e da relação com o universo infantil. "As crianças ocuparam meus espaços, minhas ideias, definiram minha rotina e me obrigaram a mudar todos os planos o tempo todo. Eu vivi a maternidade de uma forma muito intensa. Tive o privilégio de poder me dedicar a ela exclusivamente por alguns anos e esse mergulho na infância virou minha vida de cabeça pra baixo. Descobri a literatura infantil, me joguei nas brincadeiras e aprendi a olhar o mundo com lentes de criança.
Perdi o controle de muita coisa, mas a vida ficou mais criativa e vibrante. (Patricia Auerbach, escritora)
Patricia Auerbach e Isabela Santos cativam os leitores aos mostrar como o poder dos gestos pode ser tão forte quanto o das palavras na hora de demonstrarmos afeto.
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Lígia Moreiras chama atenção para o fato de que o aprendizado de hoje pode não servir amanhã, já que a criança está em constante crescimento, e isso também reforça a necessidade de o adulto fluir junto com a organicidade desse processo.
“Me despedi da mulher que eu era no dia em que soube da minha gravidez e, embora essa mudança tenha sido um processo doloroso, não tenho saudade, porque hoje sou uma mulher mais centrada, mais consciente de mim mesma como mulher e como parte de um grupo”, compartilha.
Quanto mais o adulto se instrumentaliza para lidar com as constantes transformações que a lida com as crianças exige, menos fica refém dos discursos prontos sobre o que é ser mãe e pai, alimentados pela mídia, pela publicidade e, em certa medida, pelas próprias famílias.
“Muita gente trata a maternidade como algo para o qual podemos nos preparar. E isso é uma ficção, uma ilusão tremenda. Justamente porque não é possível nos prepararmos para algo que não temos ideia de como será, que está absolutamente fora de controle. Maternidade e controle não vivem no mesmo planeta. E isso gera muita angústia”, pontua Ligia.
Você pode ir em busca de informações básicas, como amamentação, sono e alimentação do bebê. Mas a maternidade é a coisa mais incontrolável da vida. (Ligia Moreiras, pesquisadora)
A parentalidade possível
Se o controle está fora de cena na educação dos filhos, o que entra nessa dinâmica como possibilidade concreta? Pablo Uchoa destaca principalmente a importância do autoconhecimento, no sentido de autorresponsabilizar-se pelos próprios sentimentos e consequências deles. “Para todo mundo que pensa ser pai ou mãe um dia, eu digo que o melhor presente antecipado que você pode dar ao seu filho e sua filha é buscar se entender primeiro, pra poder ajudá-los e ajudá-las a crescer e se desenvolver emocionalmente”, explica.
Nós, os adultos, nunca abandonamos certos instintos de criança quando crescemos, mas na hora criar os filhos é preciso calma e tranquilidade e se imbuir da mentalidade do adulto. (Pablo Uchoa, jornalista)
"Sinto como se minha filha fosse uma extensão do meu corpo, só que uma vida autônoma", diz Pablo Uchoa. Crédito: Divulgação
É o que também defende Ligia Moreiras, que pondera não se tratar de atingir uma pretensa regulação emocional perfeita, mas sim uma maior consciência de si, algo que beneficia não só o gesto da maternidade ou da paternidade, mas de todas as relações da pessoa. “Tenho meus momentos de crise emocional como qualquer pessoa. Mas consigo lidar melhor com esses momentos, compreendê-los, não deixar que me devorem porque, afinal, eu tenho alguém para cuidar”, conta Ligia.
Pablo compartilha que fazer terapia é, para ele, essencial para alcançar uma prática paterna mais justa e amorosa. “Eu tive que procurar, dentro de mim, fortaleza pra virar o pai que eu queria ser (e nem sou esse pai 100% do tempo). Mas com certeza sou um pai mais humilde, que ouve muito mais, que sabe que erra e deixa transparecer a sua infalibilidade, um pai que pede desculpas quando erra”, conta.
Eu digo que eu não estou criando minha filha, eu estou crescendo com ela, e acho que isso resume tudo. (Pablo Uchoa, jornalista)
Aprendizados da infância contra o “adultismo” da sociedade
Se o convívio com as crianças nos impele a abandonar a rigidez, rever certezas fixas e reconstruir no dia a dia as bases da relação, o que surge junto com esse novo “eu” que a parentalidade cria?
Ligia conta que a filha perdeu o pai há poucos meses, e observá-la viver o seu luto, apesar de ter sido uma dor sem igual, trouxe um grande aprendizado. “Minha filha vem atravessando essa fase de luto com muita tranquilidade, muito entendimento, com paz no coração e muita gentileza. Eu levei alguns meses para entender como isso teria sido possível, e foram muitas sessões de terapia até que eu me convencesse do motivo que a fazia estar enfrentando tudo tão bem, de maneira tão calma e serena, quando eu mesma estava péssima. E o motivo era: ter me construído como mãe da maneira como me construí, mudando tudo em mim, aceitando a maternidade e não lutando contra ela, construindo uma base sólida onde ela também sempre foi protagonista, ao contrário do que essa sociedade adultista e capitalista geralmente faz”, explica.
O maior aprendizado que já tive como mãe foi: usar a maternidade como força propulsora para me fortalecer como mulher, me fazer autônoma, forte, inteira foi a melhor coisa que fiz nessa vida. (Ligia Moreiras, pesquisadora)
Pablo também afirma que a paternidade trouxe importantes revisões de conceitos. Quando ele percebeu que a ideia de sucesso apregoada pela sociedade não lhe dizia respeito, passou a enxergar a vida de outra forma, menos conectada ao exterior. “Existe uma ideia que eu conheci faz pouco tempo, que é: o sucesso é para os homens o que a beleza é para as mulheres. Existe uma 'ditadura do sucesso' no meio masculino, assim como uma 'ditadura da beleza'", explica.
O maior aprendizado de ser pai, pra mim, foi mudar completamente a minha noção de felicidade. A grande lição de ter uma filha é redimensionar a importância de todas as coisas. (Pablo Uchoa, jornalista)
Para o jornalista, só estando atento a essas armadilhas podemos encontrar caminhos individuais para driblá-los. “Na vida adulta, a forma como somos socializados, as coisas que a gente aprende, nos ensinam que a felicidade está sempre lá no fim do arco-íris. Você tem que batalhar, crescer, ganhar status, virar um grande profissional, fazer coisas incríveis, ganhar dinheiro, e aí você alcança a felicidade, e só então vira uma pessoa feliz”. Porém, é a criança, segundo ele, que mais ensina sobre a forma genuína de felicidade. “A criança nasce autêntica, ttambém do ponto de vista da felicidade, de se sentir atraída pelas coisas que a deixam feliz. Ela é feliz aqui e agora, ela é feliz nas pequenas coisas”, pontua.
Para Auerbach, a relação adulto-criança tem como principal ganho também a possibilidade de redimensionar as coisas, e ela leva essa habilidade não só para as histórias que cria, mas também para o dia a dia e o olhar para si mesma.
Aprendi a viver a vida com mais leveza. Desde pequenos os meninos tinham um jeito mais simples de olhar para as suas dificuldades do que eu e essa visão infantil acabou me ajudando a lidar com as minhas próprias questões de uma forma mais sábia, menos densa. (Patricia Auerbach, escritora)
(Texto de Renata Penzani)