Guilherme Karsten: “O livro, para mim, é um lugar de compartilhar”

27/10/2022

Quando Guilherme Karsten começa a dar essa entrevista dizendo que não teve uma infância leitora e que seu mergulho nos livros infantis aconteceu quando ele já era adulto, é até difícil acreditar. O autor e ilustrador catarinense tem uma habilidade e uma linguagem tão particular em suas criações que parece até que nasceu dentro desse universo. Tanto que seu trabalho é reconhecido não apenas no Brasil, onde ganhou prêmios de literatura importantes, como o Jabuti, mas também no exterior, em países como China e Eslováquia. 

“Quando um pai abre a boca e começa a simplesmente ler o que está escrito em um livro, ele abre uma porta gigantesca para conversar com a criança”
(Guilherme Karsten, autor e ilustrador)

Em um bate-papo, o autor de Carona e Se eu tivesse asas conta como sua relação com a Companhia das Letras se transformou e, de um sonho distante, virou uma parceria bem-sucedida, das mudanças no mercado editorial infantil no Brasil e da importância dos livros e da leitura como diversão e momento de conexão entre os pais e as crianças. 

LEIA MAIS: Como lidar com o amadurecimento dos filhos?

*Para comemorar os 30 anos da Companhia das Letrinhas (em 2022) e o Mês das Crianças, durante outubro você confere uma série de entrevistas exclusivas com grandes autores e ilustradores brasileiros que fazem parte dessa história, sejam nossos primeiros parceiros, sejam aqueles que ganharam os maiores prêmios de literatura infantil. Acompanhe tudo no Blog da Letrinhas, no site criado especialmente para essa festa e nas nossas redes sociais. 

Guilherme Karsten

Como começou a sua relação com a Companhia das Letrinhas? Como foi fazer o primeiro livro para a editora e o que mais te marcou nesse processo?

Se eu pensar em toda a minha história de escritor e ilustrador, ela já começou com a Brinque-Book, que, hoje, pertence à Companhia das Letras. Ilustrei o Mãenhê!, primeiro livro para a Brinque-Book, a partir de um concurso que venci. Depois, trabalhando com o Ilan Brenman em vários livros, uma vez fui para São Paulo e fomos a uma reunião na Letrinhas sobre um projeto que acabou não acontecendo. Quando escrevi o Carona, criei coragem e mandei um e-mail. Foi muito legal porque, imediatamente, recebi uma resposta positiva para publicar a minha história. Era a primeira parceria e todo o processo foi muito profissional. Sempre digo que a melhor impressão de Carona é a brasileira, de longe! Bem melhor que as impressões feitas em outros países. Foi muito bem-cuidado, com um zelo muito grande pelas cores. O mesmo aconteceu agora com Se eu tivesse asas. Esse livro foi publicado primeiro na China e as cores não estavam tão legais quanto achei que ficariam. Na Brinque-Book ficaram muito bonitas e eu fiquei bem feliz.

A Companhia das Letrinhas está completando 30 anos em 2022. Nessas três décadas, qual foi a transformação mais importante na literatura infantil, tanto em termos de texto como ilustração e produção gráfica, na sua avaliação, e por quê?

Não tive uma infância leitora e acabei me interessando por livros infantis já adulto, há uns 10, 12 anos. Mas o que eu noto é que o Brasil começou décadas depois de outros países, que tinham uma tradição de literatura infantil, que já publicavam livros há muitos e muitos anos. Ainda assim, acho que conseguimos não nos igualar, mas não perder para esses outros lugares - isso até em nível de produção. Não temos tantos livros com capa dura, vejo que isso não é da nossa cultura, além de encarecer os produtos. No entanto, distribuímos os livros ao redor do país, temos autores nacionais, temos uma literatura que é nossa, uma assinatura, uma estética brasileira, tropical e, em alguns momentos, indígena, negra. Tem uma cara nossa, tem essa coisa vibrante do Brasil. Não fazemos um ‘copia e cola’ lá de fora. O que está acontecendo lá fora e que é bom, trazemos para cá e é quase em tempo real, sim. Mas, além disso, tem muita produção nacional. 

LEIA MAIS: Daniel Munduruku: “A Letrinhas ofereceu ao Brasil a possibilidade de redescobrir a própria identidade ancestral”

Carona, Guilherme Karsten

Poderia citar três livros infantis que foram mais importantes ou marcantes para você nesses últimos 30 anos? Dos publicados pela Letrinhas, qual você citaria?

Quando me perguntam isso, sempre dou respostas diferentes. Mas um deles é O Dariz, do Olivier Douzou. Eu gosto demais desse livro, do texto, de como ele é escrito. Você lê como se estivesse com o nariz entupido. Achei de uma criatividade… As ilustrações são simples e bonitas. Outro livro de que eu gosto e muito, e que me marca porque sempre olho como referência de simplicidade na quantidade de informação, é Quero meu chapéu de volta, de Jon Klassen. As expressões - ou a falta delas - nos personagens diz tudo e é um gênero que me interessa: comédia, piada, ironia. É meu estilo de literatura predileto.

Outro de que eu gosto muito e que, para mim, fez toda a diferença, é o Carvoeirinhos (Companhia das Letrinhas), do Roger Mello. Sempre o vejo com esse olhar de aprendiz. É uma leitura um pouco mais densa, mas conecta muito com as ilustrações que Roger faz, as cores escolhidas, tem colagens incríveis, dignas de prêmio. Acho genial uma cena em que o livro está pegando fogo e tem papéis recortados. É um livro que está sempre na minha mão quando estou pesquisando sobre materialidade dos livros e efeitos. Não subiu alguns degraus na literatura brasileira, mas uma escada inteira. Além de Carvoeirinhos, tem também A árvore generosa (Companhia das Letrinhas), que me toca demais. É muito bonito e tem uma história incrível. E Bárbaro (Companhia das Letrinhas, 2013), do Renato Moriconi. Gosto muito, acho muito bem feito, a produção é muito bonita. Não precisou de qualquer palavra para criar essa história. É um baita clássico moderno. 

Qual acontecimento relacionado ao processo de criação e produção dos livros ou ao feedback e interação com os leitores ficou na sua memória ao longo desse tempo? Poderia contar um pouco qual história mais te marcou?

Acho que toda a criação do livro, para mim, é uma vitória. Toda vez que eu consigo ter uma ideia, criar um meio e um fim, é soltar rojões e tomar champanhe, porque é muito difícil. Mas lembro de um fato que aconteceu há alguns meses e me marcou muito. Fomos visitar uma escola em Blumenau. A professora contou que estavam trabalhando um livro meu, A caçada. Ela me disse que eles tinham montado uma minifloresta (porque é algo que tem no livro) e queriam me levar lá para visitar. Também queria que os alunos conhecessem o autor. E nós fomos. Quando vimos a floresta, construída com tanto esmero, tão bonita… Era gigante, pegava duas paredes enormes de um auditório. Eles criaram animais bem parecidos com animais do livro. Quando você vê uma ideia que você teve, de um livro que criou…. Quando vê que as pessoas não só leem, mas abraçam a história, criam um universo no qual as crianças se divertem… Tinha um lago, árvores, folhagens, cavernas, animais. Aquilo foi incrível! Eu nunca pensei no poder que uma história minha teria na vida dessas crianças e dos professores também, então, me marcou demais. Outro fato foi quando ganhei o Jabuti, em 2021, pelo Carona. Também foi muito marcante. Eu estava aqui em casa, sozinho, vendo a live do Jabuti, e fiquei muito feliz, empolgado. Não sabia nem com quem festejar. Gostei demais.

A floresta criada por alunos e professores, inspirada em livro de Guilherme Karsten
A floresta criada por alunos e professores, inspirada em livro de Guilherme Karsten

Como você vê/avalia a participação da Companhia das Letrinhas no mercado editorial e na própria história da produção literária para a criança? 

Antes de publicar, olhava e falava, aqui debaixo: “Nossa, um dia, quero publicar um livro pela Companhia das Letrinhas, mas não sei se esse dia vai chegar, porque eles estão lá em cima e eu, aqui embaixo”. Mas deu certo, eu consegui! Sempre olhei para a Letrinhas como uma editora poderosa, não só no sentido de qualidade de livros, mas também com uma qualidade incrível nos títulos, uma curadoria muito boa para cada história, a qualidade dos produtos.

Olhando para a história, acho que a editora conseguiu dar voz e força para autores daqui para nos igualarmos a produtos lá de fora. Ela viu a capacidade de artistas brasileiros produzirem bons trabalhos, deu essa oportunidade de dar um bom produto para a história de cada autor. Acho que também deu força para os artistas. Conseguiu visualizar artistas que, às vezes, não estariam nos livros, mas que, quando colocados ali, o resultado é incrível. Tem essa criação de novas estéticas. A Companhia tem um grande olhar para a diversidade e para a variedade de produtos. Tem Emicida, que é um rapper, escrevendo livros para crianças. Lá fora, acontece muito de artistas que não são do meio do livro fazerem livros. Aqui, não é tão forte, não é tão comum, mas a Companhia dá essa potência também. 

LEIA MAIS: Uma viagem pelo Brasil com 10 autores de literatura infantil

Além dos livros, as crianças têm várias fontes de entretenimento, como telas, vídeos, streamings, games. Como acha que a literatura infantil será nos próximos 30 anos? Qual o grande desafio que autores e leitores terão?

Não sei dizer como vai ser. Sou um terrível futurólogo, mas acho que os livros continuarão existindo, principalmente livros para a infância. O livro físico é extremamente importante e tira as crianças da frente da tela, apesar de toda a força dos streamings, dos jogos e de tudo o que está acontecendo. Também vejo que é crescente a preocupação de pais com os filhos, em dar tempo de qualidade a eles. Tanto que existem escolas de pais, muitas pessoas falando da importância da maternidade e da paternidade, de estar junto das crianças.

O livro entra nesse lugar. Não é só colocar a criança em um canto com o livro nas mãos. É preciso estar junto, criar esses elos e essas conversas para manter essa amizade. Acho que isso se torna cada vez mais necessário e o livro é esse ponto. E esse elo não pode ser um elo chato. Por isso, temos problemas quando os pais querem colocar livros com moral para as crianças. Aí, elas acabam achando os livros chatos, porque não é divertido, porque é sem graça, porque os pais querem dar lição através de algo que deveria ser para brincar e se divertir. O livro, para mim, é um lugar de compartilhar. Estamos juntos, os pais estão brincando com os filhos, estão conversando. Quando o pai abre a boca e começa a simplesmente ler o que está escrito, ele abre uma porta gigantesca para conversar com a criança. 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog