Às vezes, tudo o que a gente quer é alguém que nos abrace. E esse abraço não é simplesmente literal. É também caber em um lugar que nos seja confortável, que nos faça sentir bem, que demonstre afeto, que nos acolha. Um espaço ao qual pertencemos, um grupo para chamar de seu. Esse era o sonho de Felipe, um cacto que nasceu em uma família na qual os abraços não eram muito comuns e que gostaria de fazer amigos. Mas, com seus espinhos, ninguém queria abraçá-lo. Triste, ele se isolou até encontrar alguém que mudou essa história, o amigo certo.
A história está no livro Quero um abraço (Companhia das Letrinhas, 2023), de Simona Ciraolo, mas também está na realidade de muitas crianças, que querem encontrar um amigo ou um grupo para pertencer - principalmente no começo do ano, na volta às aulas, quando as turmas de amigos na escola precisam ser refeitas. Por que essa busca por pertencimento, acolhimento e validação do outro, fora do círculo familiar, é tão importante para crianças e adolescentes? Por que isso pode ser especialmente difícil para alguns? E como ajudar nesse processo de socialização?
No livro de Simona Ciraolo, Quero um abraço, um cacto busca alguém para abraçar e finalmente encontra alguém para chamar de amigo
Buscar um lugar em que a gente se encaixa, uma turma que oferece acolhimento, é algo que as crianças fazem desde sempre - e os adultos também. Aliás, talvez seja só por isso que a espécie humana chegou até aqui. “Não podemos nos esquecer de que nós, humanos, somos seres gregários, seres sociais, seres que evoluíram”, lembra a psicóloga Desirée Cassado, professora na The School of Life (SP). “Estamos aqui hoje porque descendemos de antepassados que buscaram proteção em grupos. Isso significa dizer que nós somos muito vulneráveis quando estamos sozinhos, desde muito pequenos."
Nós precisamos de proteção social, fomos feitos para a conexão, estamos o tempo todo buscando validação do grupo, das pessoas ao nosso redor. (Desirée Cassado, psicóloga e professora)
Segundo ela, é normal, então, que as crianças emocionalmente saudáveis, busquem, primeiro, o pertencimento no seio familiar e, depois, conforme vão crescendo, procurem atenção, conexão e vínculo também fora desse círculo.
Pedras (ou espinhos) no caminho das amizades
Às vezes, encontrar uma amizade é fácil. Você fala um “Quer brincar?”, a outra criança aceita e pronto! Está criado um laço, que pode durar horas, dias ou até uma vida inteira. Mas nem sempre é tão simples. Em muitos casos, crianças e adolescentes encontram dificuldades para sentir que pertencem a grupos específicos. “Essas dificuldades podem ter inúmeras causas”, aponta Desirée. “Podem ser de origem cultural, social, podem vir de questões específicas de etnia, raça, gênero e muito mais”, detalha.
Para superar essas e outras diferenças, mesmo as menores, como “eu gosto da cor amarela e a criança que quer ser meu amigo só gosta de azul”, é preciso entender que a habilidade para a criação de outros vínculos é uma construção. “É importante entender que, para termos relações sociais fora do nosso círculo familiar, precisamos ter maturidade e regulação emocional, competências e habilidades sociais que servem para conseguirmos nos relacionar de forma saudável e estabelecer vínculos”, explica a psicóloga. Tudo isso vem da educação e das experiências que, aos poucos, vão nos ensinando a lidar com diferentes situações e pessoas.
A pandemia por Covid-19, por exemplo, foi um grande obstáculo e atrapalhou crianças e jovens no mundo inteiro, nesse sentido. Eles tiveram um longo período de isolamento e afastamento da escola, que os privou da convivência com os outros, refletindo em déficit na habilidade social.
As crianças, hoje, estão mais agressivas, mais impulsivas e têm menos estratégias para lidar com conflitos nas relações sociais, menos estratégias para lidar com a intimidade, com os limites, o que dificulta essas parcerias que se estabelecem em outros lugares, que não na família. (Desirée Cassado, psicóloga e professora)
Com tantas questões e dificuldades, muitas vezes, as crianças se isolam ou tentam se encaixar a qualquer custo em grupos errados, que não fazem bem a elas, ou acabam provocando situações que geram brigas ou divisões. Será que os adultos podem ajudar nessa busca delas por pertencimento?
Como pais e professores podem ajudar as crianças na busca por pertencimento?
O primeiro passo é, na verdade, não atrapalhar. Isso acontece, segundo a psicóloga, quando os adultos tentam culpar a criança pelo baixo repertório dela de habilidades sociais, como se ela fosse a única responsável por não ter amigos e não conseguir entrar em um grupo. “Isso tudo prejudica e piora a situação”, diz Desirée.
Para começar a ajudar as crianças a superarem situações difíceis nesse quesito, pais e professores podem observar a criança para tentar entender quais são as origens dessas dificuldades. “Veja se pode ter a ver com a maturidade da criança, com o desenvolvimento sócio-emocional ou de habilidades sociais, se está mais relacionado às habilidades sociais do grupo. Os pais e professores precisam estar muito cientes em entender quais são os pontos que podem ser indicativos ou complicadores para as questões sociais da criança”, aponta a especialista.
De acordo com ela, raramente é uma questão única ou tem um ponto individual. “É provável que seja uma conjunção de muitos fatores, como uma criança que tem baixo repertório de habilidades sociais e se encontra com um grupo imaturo, que também tem baixo repertório. Ou o grupo tem uma liderança com um comportamento de bullying ou agressividade…”, exemplifica.
Para Desirée, é importante que os adultos trabalhem em várias frentes, principalmente tentando mediar essas relações, criando interações íntimas, que propiciem trocas reais entre as crianças. “Eles podem organizar atividades que só beneficiam a sala quando a turma trabalhar em grupo ou promover conversas em que os alunos tenham de olhar para o colega ao lado e dizer uma qualidade, por exemplo”, diz.
É essencial que os pais e os professores trabalhem em conjunto. “Eles devem ficar atentos a essas habilidades sociais que as crianças estão ou não desenvolvendo, quais são os déficits. Quando existem problemas de socialização ou de formação de vínculos, pais e professores precisam estar muito bem afinados para entender o que a criança que sofre essa exclusão está passando, qual é o repertório que ela precisa desenvolver”, aponta.
Um exemplo do que os pais podem fazer é eles mesmos terem uma vida social com outros pais, com crianças de idades parecidas. “Então, a família terá a oportunidade de ver os filhos numa situação social que não seja com adultos, mas com outras crianças. Assim, é possível observar o que acontece e talvez intermediar e ter mais informações sobre como a criança funciona em um ambiente de grupo. Às vezes, a criança tem um funcionamento com adultos e outro, totalmente diferente, com outras crianças”, indica a especialista.
Cadê os amigos que estavam aqui?
Às vezes, a criança não tinha problemas de socialização e até encontrou um amigo com quem tem uma conexão ou um grupo que a acolhe. Só que, por algum motivo, a amizade ou, pelo menos, a convivência diária é interrompida. Acontece quando o melhor amigo muda de escola, quando a criança muda do prédio, quando a família muda de cidade ou quando os amigos brigam e rompem o elo. Para Desirée, essa quebra é como se fosse uma espécie de luto e implica em certo retraimento social. “A criança precisa lidar com a saudade e pode ter mudanças bruscas de humor, se sentir insegura… Dependendo da importância dos amigos, ela pode até ter adoecimento psíquico e precisar de ajuda profissional mesmo”, conta.
Para lidar com uma criança em processo de luto, os pais, assim como os adultos ao redor, precisam ter muita compaixão. Muitas pessoas diminuem o problema, acham que é besteira, frescura, dizem que logo a criança vai encontrar outros amigos. Provavelmente, vai, sim, mas a dor e o sofrimento são reais e precisam ser levados a sério. “É necessário entender que a criança precisa do tempo dela, dar espaço para ela absorver essa transformação, dar espaço para ela se retrair socialmente, se isso for importante, permitir que tenha espaço para falar desse luto, dessa falta, criar formas de incentivar que essa criança fale do que está sentindo, vivendo, experimentando”, explica a psicóloga.
“Por mais que eu seja contra forçar amizades, acho importante pais e professores criarem ambientes que aumentem as chances de amizades acontecerem, que aumentem possibilidades, seja um encontro na casa de um amigo, um cinema, na escola mesmo ou festas de aniversário. Tudo o que a criança topar e que a coloque em uma situação social de exposição pode ajudar”, afirma Desirée
Uma reação que também pode acontecer é a criança tentar, desesperadamente, se encaixar em grupos que não tenham a ver com ela ou que não façam com que ela se sinta bem, por desespero, diante dessa perda, desse luto ou dessa busca por pertencimento. Nessa hora, também é necessário ajudar a criança a se observar, desenvolver o autoconhecimento, entender o que faz bem para ela e o que não faz. “Fazer isso, além de ampliar a exposição dessa criança a outros grupos. Então, tem o grupo do esporte, o grupo que faz música, o grupo dos amigos dos pais… Mostrar que há outros grupos que possam servir de referência para essa criança”, orienta. “É legal colocar essa criança para se relacionar com outros grupos, que também possam ser relevantes, em que ela possa ter a oportunidade de encontrar mais pessoas com quem ela possa se encaixar”, explica. Certamente, tem muita criança por aí querendo abraçar a sua criança.