
A menina que queria ir para a escola (e inspira tantas outras)
Inspirada em livro de Adriana Carranca, peça que trata da história da ativista Malala Yousafzai é encenada nos palcos de São Paulo pela primeira vez
O dia em que fazemos coisas pela primeira vez é sempre um grande dia. Nos livros da ilustradora e escritora italiana Beatrice Alemagna, 51, a possibilidade de todos os dias serem esse tal “grande dia” – mesmo que os anos inevitavelmente nos transformem em adultos –, é oferecida como um presente: o de vivenciar a infância não como um período cronológico, mas um modo de se relacionar com a vida.
O Blog Letrinhas entrevistou a artista, que vive hoje em Paris com as duas filhas, para falar sobre a estreia dela na Companhia das Letrinhas com o livro Nem sonhando! - é o quinto dela no Brasil - e relembrar sua jornada de mais de vinte anos dedicados aos livros ilustrados (você confere a entrevista completa mais adiante). Beatrice é internacionalmente conhecida como uma das mais premiadas artistas da literatura ilustrada contemporânea, e recebeu o Hans Christian Andersen em 2022.
Na história, acompanhamos o primeiro dia de aula de uma morcega chamada Catarina. Diante da insistência dos pais em levá-la, Catarina é categórica: "Nem sonhando!", ela responde – e a frase vai parar no título da obra. A resistência é tanta que os berros da morceguinha fazem seus pais encolherem... até ficarem do tamanho de amendoins. E são eles, assim pequeninos, que acabam sendo carregados para a escola por Catarina - que perto deles se torna grande. Assim, todos os personagens podem experimentar o crescimento a partir da perspectiva da criança e dos seus próprios marcos de desenvolvimento, uma metáfora sensível da autora, que inverte papéis e constrói outras referências a partir de situações nunca vivenciadas.
Nem sonhando! ilustra bem uma das premissas de Beatrice: "uma boa história para crianças é feita de irreverências e de inversões de situações", afirma a autora. A vivência da alteridade, a possibilidade de trocar de papéis entre crianças e adultos, e assim experimentar como é "ser outro” é algo também recorrente nas narrativas da autora.
Os pais de Catarina querem que ela vá para a escola. Mas ela não vai, não. Nem sonhando!
O primeiro livro de Beatrice chegou ao brasil em 2009, quando foi editado por aqui Meu amor (Escala Educacional, 2009), seguida dos conhecidos O que é uma criança (WMF Martins Fontes, 2010), Pequena coisa gigantesca (Pulo do Gato, 2014) e Os cinco esquisitos (WMF Martins Fontes, 2014). Sua produção já soma mais de 40 livros, entre histórias ilustradas e escritas por ela, e contos de outros autores que ela é convidada a ilustrar, como Gianni Rodari – Un e sept (2001), publicado na França, Coreia do Sul, nos Estados Unidos e na Espanha, e A sbagliare le storie (2020), editado na Itália, na Coreia do Sul e nos Estados Unidos. A autora ilustrou também histórias de Astrid Lindgren, Antoine de Saint-Exupéry e Nancy Lim.
Desde 2003, Beatrice tem tido seu trabalho exposto e homenageado em mostras pela Europa – especialmente na França e na Itália – e foi contemplada com alguns dos mais relevantes prêmios do segmento infantil, quatro vezes nomeada para o ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award) e cinco vezes selecionada para compor o catálogo White Ravens, da International Youth Library, na Alemanha. Em 2022, a artista recebeu o The Extraordinary Award for an Extraordinary Artist, na Feira do Livro de Bolonha, e em 2023 venceu o La Grande Ourse 2023, oferecido pelo Salon du Livre de Montreuil (França). Suas obras ganharam traduções em diversos países, como Japão, China, Espanha, Portugal, Polônia, Coreia do Sul, Suíça, dentre outros.
Beatrice tornou-se conhecida por histórias que articulam simplicidade narrativa com profundidade temática, como A pequena coisa gigantesca, que discute o que é a felicidade, e O que é uma criança?, em que a concepção de infância é perspectivada do ponto de vista cultural.
A tônica bem-humorada é outra característica que perpassa toda a obra da artista. Em Os cinco esquisitos, cinco criaturas de formas irreconhecíveis – Furado, Dobrado, Mole, Ponta-cabeça e Errado – são apresentadas cada qual em sua imperfeição. Desengonçados e desajustados, eles não conseguem fazer nada direito (será?). Ao acolher a estranheza dos personagens e suas identidades desviantes, a história instiga os leitores a pensar quem define o que é normalidade, deixando para o leitor uma fábula sobre valorização das diferenças.
Inspirada desde cedo por grandes clássicos da literatura, como Gianni Rodari e Astrid Lindgren, Beatrice Alemagna é uma das mais admiradas artistas contemporâneas da literatura ilustrada europeia
Autora de dezenas de livros que já nascem potencialmente clássicos, Beatrice nasceu em 1973, passou a infância e parte da juventude em Bolonha, cidade italiana conhecida por ser um polo cultural que atrai pessoas de todo mundo e é referenciada por abrigar o evento de literatura infantil mais famoso do mundo.
Desde que decidiu se tornar escritora e ilustradora de livros infantis, aos 8 anos, Beatrice personifica a ideia de nos deixarmos levar pela criança que fomos, como dizia Saramago. Para ela, a literatura facilita e viabiliza essa conexão sempre possível.
E não são só as crianças que estão incluídas nessa possibilidade, mas todas as pessoas, em qualquer idade. Afinal, trata-se de apostar em uma inversão valiosa na percepção cultural dos leitores: enxergar a criança como um ser que já é um indivíduo, e o adulto como um sujeito em constante formação. Misturar esses dois caminhos e fluir entre eles é um fator determinante para ampliar repertórios, e um dos elementos que separa um mero “era uma vez” de uma história verdadeiramente atemporal.
Beatrice é fã confessa de grandes personagens da literatura europeia – como a heroína emancipada Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren, que abriu caminhos para a representação da criança independente na literatura infantil. E, especialmente, a italiana – como o sonhador Marcovaldo, personagem-alegoria de Ítalo Calvino, que passa os dias prestando atenção em buracos de cupim, fungos na calçada e pequenas folhas.
Não por acaso, os personagens de Beatrice Alemagna também passam um bom tempo concentrados em detalhes invisíveis. Como se fossem eternos Marcovaldos mirins, as crianças e os bichos de seus livros vivem fazendo coisas inesperadas, existindo além de padrões estabelecidos, e vivendo suas vidas em estado de infância. Pode ser um porco com cabeça de cachorro, uma criatura esquisita que vive em um bando mais esquisito ainda, ou uma morcega psicanalítica que esconde os pais debaixo da asa: a chance de os leitores saírem com algo novo de suas histórias é enorme. Como uma criança curiosa que enfia as mãos em um buraco desconhecido e descobre nele um segredo da existência.
De Bolonha, onde vivenciou a infância e adolescência a Paris, para onde ela se mudou nos anos 1990, aos 26 anos, Beatrice teve o privilégio do acesso facilitado às mais diversas linguagens artísticas. Por dez anos, ela foi a artista responsável pelos pôsteres do Centre Pompidou, museu e centro cultural francês que abriga a mais importante coleção de arte moderna e contemporânea da Europa. Essa longa conexão com a arte, iniciada nos primeiros anos de vida, transparece em cada pincelada ou palavra.
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Beatrice é fã confessa de grandes personagens da literatura europeia – como a heroína emancipada Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren, que abriu caminhos para a representação da criança independente na literatura infantil. E, especialmente, a italiana – como o sonhador Marcovaldo, personagem-alegoria de Ítalo Calvino, que passa os dias prestando atenção em buracos de cupim, fungos na calçada e pequenas folhas.
Não por acaso, os personagens de Beatrice Alemagna também passam um bom tempo concentrados em detalhes invisíveis. Como se fossem eternos Marcovaldos mirins, as crianças e os bichos de seus livros vivem fazendo coisas inesperadas, existindo além de padrões estabelecidos, e vivendo suas vidas em estado de infância. Pode ser um porco com cabeça de cachorro, uma criatura esquisita que vive em um bando mais esquisito ainda, ou uma morcega psicanalítica que esconde os pais debaixo da asa: a chance de os leitores saírem com algo novo de suas histórias é enorme. Como uma criança curiosa que enfia as mãos em um buraco desconhecido e descobre nele um segredo da existência.
De Bolonha, onde vivenciou a infância e adolescência a Paris, para onde ela se mudou nos anos 1990, aos 26 anos, Beatrice teve o privilégio do acesso facilitado às mais diversas linguagens artísticas. Por dez anos, ela foi a artista responsável pelos pôsteres do Centre Pompidou, museu e centro cultural francês que abriga a mais importante coleção de arte moderna e contemporânea da Europa. Essa longa conexão com a arte, iniciada nos primeiros anos de vida, transparece em cada pincelada ou palavra.
Beatrice Alemagna em uma imagem de sua infância. (Crédito: https://www.beatricealemagna.com)
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Em 2011, a autora tornou-se mãe, com o nascimento de sua primeira filha, Mimosa, em quem ela se inspirou para criar a protagonista do novo livro, Nem sonhando! . Na entrevista ao Blog Letrinhas, Beatrice conta que a maternidade foi uma experiência que não só deu origem a personagens e histórias mais centradas nos rituais e descobertas da infância, mas que iniciou uma nova era de criação, depois de uma década escrevendo para crianças que ela conhecia apenas em hipótese.
Não importa que todo mundo está indo para a escola: Catarina, protagonista de Nem sonhando!, não quer ir. Ao declarar sua opinião, a morceguinha grita tão alto que seus pais encolhem.
A maturidade artística de Beatrice vem se lapidando pelo princípio de nunca perder de vista aquela menina bolonhesa curiosa e fascinada pela arte que via em todo lugar. Acima de tudo, suas narrativas são construídas por uma singela humanidade, com a habilidade de transformar situações cotidianas em janelas de crescimento. Janelas por entre as quais crianças e adultos têm vontade de espiar.
Quando perguntamos à autora o que mais a instiga a começar um novo livro, ela menciona a importância de reconhecer que somos pessoas em um eterno aprendizado. “Diversidade, busca e aceitação da própria identidade, por mais estranha ou complicada que seja. Este é um dos temas que mais me motiva e fascina nos livros que escrevo”, diz Beatrice.
Capa de Nem sonhando!, o mais recente lançamento de Beatrice Alemagna no Brasil
Na entrevista abaixo, realizada por e-mail, conversamos sobre o livro novo, as suas referências artísticas, a influência de seus dois países de formação na literatura infantil, a ideia de infância que sua obra apresenta e as particularidades que atravessam seu processo de criação.
Beatrice Alemagna: Sim, foi uma influência enorme! Esse é um dos motivos pelos quais, aos oito anos, eu decidi que faria livros infantis.
Beatrice Alemagna: Eles moldaram profundamente minha imaginação. Eu cresci com Fábulas por telefone [Gianni Rodari] e As aventuras de Pinóquio [Carlo Collodi]. Mas, sobretudo, com a ideia de que uma boa história para crianças é feita de irreverências e de inversões de situações.
Beatrice Alemagna: Mais do que a cultura francesa, são os hábitos e comportamentos que me marcaram aqui. Como por exemplo as pessoas ficam irritadas quando esquecemos, mesmo em uma situação extrema, de cumprimentá-las antes de qualquer outra coisa. A atenção à etiqueta social é muito importante aqui. Mas, para além disso, especificamente no mundo dos livros, absorvi a ideia de que um livro infantil pode realmente falar sobre tudo, e com ironia.
Beatrice Alemagna: Para mim, é tudo uma questão de desejo e de tempo. Gosto de variar tanto a minha linguagem quanto minhas técnicas. Em todo caso, procuro sempre deixar escapar algo que é importante para mim, porque a filosofia e o humanismo também estão escondidos em histórias leves ou engraçadas.
Beatrice Alemagna: Pascalina (Catarina) é inspirada diretamente na minha filha Mimosa, com o seu caráter duro e rebelde, mas também com a sua grande fragilidade e ternura. Suas histórias falam sobre questões da infância que estão no meu coração, como a independência e a consciência sobre a importância do amor na nossa vida.
Beatrice Alemagna: Completamente. Faço livros desde 1998, e só me tornei mãe em 2011. Então, fiquei mais de dez anos publicando sem ser mãe. Antes, os livros que eu escrevia eram mais voltados para a menininha que dormia dentro de mim, com meus próprios problemas e reflexões.
Beatrice Alemagna: Um papel enorme: ler um livro cria um vínculo único que também pode ajudar a superar momentos dolorosos e a unir-se.
Beatrice Alemagna: Os morcegos raramente são representados em livros infantis. Eu procurava um personagem que fosse original e de certa forma perturbador, no bom sentido da palavra. Minha paleta com rosa neon suaviza as imagens, as ilumina e cria esse contraste cromático que dialoga muito comigo, me fascina.
Beatrice Alemagna: Sempre.
Beatrice Alemagna: A poesia simples de Jacques Prévert, tanto quanto a arte naïf, os pintores surrealistas e a arte bruta.
Beatrice Alemagna: Diversidade, busca e aceitação da própria identidade, por mais estranha ou complicada que seja. Este é um dos temas que mais me motiva e fascina nos livros que escrevo porque penso que a criança está à procura de si mesma, sendo um ser em formação onde tudo sobre ela é desconhecido.
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(Texto: Renata Penzani)
Inspirada em livro de Adriana Carranca, peça que trata da história da ativista Malala Yousafzai é encenada nos palcos de São Paulo pela primeira vez
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