Mães da literatura: as figuras maternas dos livros que mudam com o mundo

30/04/2024

Bravas. Exigentes. Perfeitamente alinhadas. E sempre, sempre as principais cuidadoras das crianças. Se você consumiu literatura infantil entre as décadas de 1980 e 1990, certamente vai se lembrar de como as mães eram retratadas nas histórias. Eram aquelas que dão bronca, que passam a tarde assando um bolo, usam vestido, salto, avental e coque. Nada a ver com as mães de hoje - tanto no mundo real quanto nos livros infantis atuais. Neles, a mãe trabalha, brinca, senta no chão, fica cansada, tem dúvidas e também é um ser com vontade e desejos próprios. Às vezes, a mãe não está. Há outros cuidadores e existem configurações familiares mais diversas. 

Mas quando foi, exatamente, que a representação da figura materna em livros voltados para crianças ficou tão diferente?

Almoço de família

Em Almoço de família, a família vai mudando quando os pais se separam e a mãe se casa com outra pessoa 

Mudou, da mesma forma que a sociedade. Para a autora e ilustradora Janaína Tokitaka, não poderia ser diferente já que os livros infantis acompanham os tempos. “Eles evoluíram, assim como a ideia de família e a ideia do que é uma mãe foi evoluindo com o passar do tempo”, reflete. “Era muito comum nos livros da década de 1990, comecinho dos anos 2000, ou mais para trás, na década de 1980, que, se houvesse alguém olhando as crianças, esse alguém era uma mãe. Era algo bem marcado. Geralmente ela cobrava, era brava, era até antagonista das crianças”, descreve. Como a mãe era aquela figura austera e que proibia, ela era alguém que precisava, inclusive, ser vencida para que a aventura pudesse acontecer. “Não é à toa que na literatura infantil, talvez até mais na juvenil, existissem tantos personagens órfãos”, aponta a autora. “Com a ausência dessa mãe, tudo poderia acontecer e aí as ações iam se encadeando”, lembra.

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Hoje, Janaína percebe as mães representadas de uma forma diferente na literatura. Aliás, não só percebe, como cria dessa forma também. Em Almoço de família (Companhia das Letrinhas, 2023), escrito e ilustrado por ela, a mãe tem um arco de desenvolvimento particular, embora a história seja narrada do ponto de vista da criança. A mãe vive mudanças, se separa, casa com outra uma mulher. “Claro que o que importa ali é como isso se reflete na vida da criança, porque você está falando com ela, mas você percebe que a mãe também vive”, aponta. Para ela, nos livros contemporâneos, a mãe aparece muito mais como uma companheira, principalmente nos momentos de brincadeiras, e ganha muito mais importância como personagem. "Ela é mais divertida e mais humana também”, avalia a autora.

Do lado de cá

A vida imita a arte ou a arte imita a vida? Os dois caminhos são possíveis, mas faz sentido que as produções culturais, entre elas, os livros infantis, reflitam a maneira como nos comportamos no mundo real. Alguns dados mostram mudanças significativas na forma de criar filhos a partir da geração Y ou millennials, ou seja, aqueles nascidos entre meados dos anos 1980 até 2000 - sim, são aqueles que nasceram lendo os livros em que as mães eram perfeitas, vigilantes e austeras. Uma pesquisa feita pelo Boston College, nos Estados Unidos, mostrou que os pais millennials dedicam três vezes mais tempo aos filhos, em comparação com as gerações anteriores. Ao mesmo tempo, de acordo com um levantamento global da consultoria EY, mães millennials tem o dobro de chances de trabalhar pelo menos 8 horas por dia, em relação à geração anterior, dos boomers. A dinâmica da vida mudou e isso naturalmente passou a se refletir também nas obras. “Noto também que, nos livros, esse cuidado dos filhos é mais dividido com o pai, que não é só aquele que chega do trabalho, pendura a pasta e o casaco, e está cansado, como aparecia na literatura mais antiga”, lembra Janaina.

 “As mudanças que vão acontecendo nas dinâmicas familiares das pessoas têm um reflexo na literatura infantil; ela caminha junto” , Janaína Tokitaka

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Essas mudanças são vistas tanto nos textos como nas ilustrações. “Ilustradores sensíveis estendem esse cuidado à representação da mãe”, lembra a autora. “Hoje, temos mais mães racializadas, mães com corpos diversos. Vejo que elas são representadas com roupas mais modernas, que permitem que elas se movimentem. Tem mãe de tênis, mãe de calça, de shorts e, assim, elas fogem um pouco daquela mãe típica de um livro infantil dos anos 1950, 1960, toda arrumadinha, sem um fio de cabelo fora do lugar. Isso é bem positivo também”, opina.

Livros que abraçam as mães (e as crianças também)

Quando lemos histórias que mostram vidas parecidas com as nossas, isso gera uma identificação. Tanto os pais quanto as crianças se sentem representados e isso também funciona para mostrar certos pontos de vista, despertar a empatia, gerar conversas. “Temos visto livros infantis que falam sobre o cansaço materno, sobre a mãe que não dá conta de tudo, a mãe que erra, que falha”, aponta a a autora. Ela destaca que na ‘literatura de colo’, aquela feita para crianças muito pequenas ou bebês, essa unidade entre mãe e criança existe de forma muito intensa. "Quando a mãe lê um livro infantil, de certa forma, ela está lendo também para ela. Portanto, além de ajudarem a gerar essa empatia, esses livros também ajudam as crianças a verem que as mães também se cansam e que elas também têm limites”, reforça.

Diante de uma sociedade que vangloria pessoas perfeitas, nos lindos recortes postados nas redes sociais - que não mostram a casa bagunçada, as olheiras, a louça na pia, o sentimento de inadequação e de estar sempre um passo atrás - é importante mostrar a falha, a frustração, a exaustão, a figura humana que simplesmente não dá conta. Para uma mãe, poder conversar com as crianças sobre como ela se sente, ou como pode se sentir, é um alívio. E traz a sensação de que ela não está sozinha nessa jornada. Para Janaína, "são livros que acolhem e que curam”.

Mas quanto dessas mensagens as crianças entendem, de fato? Para a autora, elas compreendem muito, não só na leitura, como na vida mesmo. “Conforme o conceito de maternidade foi evoluindo para além dessa mãe que precisa se sacrificar em prol dos filhos, que tem de engolir o cansaço, que não pode comunicar essa exaustão, que precisa fingir que está bem, mesmo quando está doente, o fato de a mãe poder falar sobre os limites dela é um avanço. E está tudo bem! A criança aprende com isso. É uma comunicação positiva e construtiva ”, pontua.

Ana Paula Tavares, editora executiva do núcleo Infantil da Companhia das Letras e editora da Pequena Zahar, concorda com Janaína e acredita que as personagens maternas têm sido apresentadas na literatura infantil com muito mais nuances do que víamos no passado. Para ela, é um processo que continua em andamento. “É algo que está sendo construído, enquanto a sociedade reforça uma urgência de se repensar a maternidade”, afirma. Ela cita um trecho do provocativo livro Manifesto antimaternalista (Zahar, 2023), da psicanalista Vera Iaconelli, para analisar esse processo de transformação que a maternidade segue vivendo.

"Maternidade é um termo curioso pela multiplicidade de sentidos que conjuga e pelos paradoxos que cria. Pode significar a relação de parentesco com os filhos, mas também o hospital onde se costuma parir. O termo ‘mãe’ se liga ao mito de que a genitora é o tipo preferencial de mãe, aquela que teria dotes naturais para a função. Aparentemente, em todo lugar e, portanto, em nenhum com muita clareza, o termo revela nossa dificuldade em entender, afinal, o que seria uma mãe e qual a diferença entre a função materna e a dos demais cuidadores de crianças. Ao tentar elencar essas diferenças, vemos que a convenção social prevalece, não havendo nada de intrinsecamente natural sobre esses significantes”, Vera Iaconelli

Para a editora, a primeira reflexão é sobre a diferença entre ser mãe e o cuidado materno. “O pai pode ser maternal, por exemplo”, aponta. “E este é um dos pontos que tentamos trabalhar na literatura  ao dar mais ênfase ao conceito de mãe do que à figura da mãe em si”, diferencia. Abaixo, Ana Paula Tavares e Janaína Tokitaka sugerem e comentam uma seleção de livros que trazem exemplos de mães mais próximas da realidade atual. É para separar o colinho e maratonar com os pequenos:


1. O lenço de cetim da mamãe (Companhia das Letrinhas), Chimamanda Ngozi Adichie

Escrito pela celebrada autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o livro fala de uma mãe que usa um lenço de cetim nos cabelos para dormir. Quando ela sai, pela manhã, para trabalhar, a criança fica com esse lenço, que a acompanha em várias aventuras ao longo do dia. “Não está expressamente no texto, mas as ilustrações mostram que a mãe vai trabalhar e o pai é quem fica responsável pelos cuidados, junto com outros membros da família”, diz a editora Ana Paula Tavares. “A mãe volta no final do dia e tudo é visto de uma forma positiva, sem sobrecarga para ninguém”, acrescenta.

Capa de O lenço de cetim da mamãe


2. Porcolino e mamãe (Brinque-Book), Margaret Wild

Na verdade, este é um livro que fala de quando a mãe não está. “É sobre a ausência materna e como a criança lida com ela”, diz Janaina. “A ausência dela motiva as ações do Porcolino. É um livro que fala de um tema angustiante para os pequenos, de uma forma legal. Tudo bem a mãe não estar e, quando ela está, fica tudo bem também”, analisa. 

Porcolino e a mamãe

 

3. A mamãe do Pintinho (Companhia das Letrinhas), Heena Baek

Assinado pela coreana Heena Baek, o livro conta a história de uma gata bem ranzinza que adora implicar com as galinhas no galinheiro. Ela sempre vai lá para perturbá-las, até que, um dia, encontra um ovo um pouquinho diferente, mais amarelinho do que o normal. Então, ela vai e come o ovo. “De repente, a barriga dela começa a crescer, crescer, crescer, vai para a caixinha de areia e bota o ovo. Desse ovo, nasce um pintinho amarelinho, que é adotado pela gata. A partir daí, ela tem uma mudança de temperamento”, conta Ana Paula. “Ela se mostra uma mãe, digamos, muito cuidadosa para esse filho que ela adotou. Não é exatamente a figura materna que esperamos, mas não deixa de representar a maternidade”, completa. 

A mamãe do Pintinho

4. O lenço (Brinque-Book), de Patricia Auerback

Em um dos livros da Coleção Objetos Brincantes, O Lenço, a figura da mãe e a relação dela com a criança chamou a atenção de Janaína Tokitaka. “As duas brincam juntas. É uma história de mãe e filha, entre as quais você vê que há muito afeto”, diz a escritora e ilustradora. Em uma entrevista ao Blog da Letrinhas, Patrícia Auerbach, autora da obra, contou que logo depois de receber a primeira cópia, depois que ficou pronto, ela mostrou para a mãe dela.  “Ela folheou devagar, com muita atenção. Quando terminou, ela fechou a obra, botou-a assim perto do peito e, com os olhos cheios d'água, me disse: ‘Minha filha, é você”, contou. Lindo, não?

O lenço

5. Almoço de família (Companhia das Letrinhas), Janaína Tokitaka

Em Almoço de família, Janaína Tokitaka conta a história de Maya e como seus pratos preferidos variam, de acordo com as transformações que acontecem na sua família - e são muitas. Os pais dela se separam, ela passa a ter duas casas e a mãe dela acaba se casando com uma mulher. “Claro que é o ponto de vista da Maya que importa, porque é um livro infantil, mas existem coisas acontecendo na vida da mãe, tem um arco de desenvolvimento”, explica a autora. A editora Ana Paula Tavares ressalta que famílias compostas por mais de uma mãe, por exemplo, não era algo que víamos na literatura do passado. “Hoje, felizmente, há uma naturalidade em retratar essas famílias com conjunções diferentes, com dois pais, duas mães”, destaca. 

Almoço de família

6. Mamãe está cansada (Companhia das Letrinhas), Vanessa Bárbara

“Impossível não pensar neste livro da Vanessa Bárbara”, diz a editora Ana Paula. A forma divertida como a ilustração complementa o sentido do texto é uma das chaves que ajudam a transmitir a mensagem da exaustão materna para as crianças. “Com a chave do humor, isso talvez seja mais alcançável para as crianças, do que repetir a mesma lenga-lenga que muitas mães (inclusive eu!) repetem, dizendo que estão cansadas, que não têm ajuda, que fazem tudo sozinhas. O livro mostra a mãe sempre cozinhando, trabalhando ou tentando descansar, enquanto a filha apronta todas". Porém, do ponto de vista da criança, tudo parece uma grande brincadeira. "O livro trabalha uma representação da mãe, envolvida nos cuidados e exausta, com olheiras, mas de forma lúdica”, complementa. 

Mamãe está cansada

7. Em busca do famoso peixarinho (Brinque-Book), Gregorio Duvivier

Neste livro, Gregório Duvivier fala de uma criança que está no banho, quando chama a mãe para dar a ela uma informação inusitada: o brinquedo dela, o peixarinho, teria entrado pelo seu umbigo. “E aí, a gente vê a mãe mergulhando dentro do umbigo da criança para ir atrás do brinquedo”, diz Ana Paula. “O nonsense é o que rege essa história, mas acho bem curioso pensar que é o tipo de mãe que embarca na brincadeira do filho. A criança diz que o brinquedo entrou pelo umbigo e ela mergulha, vai atrás, procura, até conseguir trazê-lo de volta”, avalia.

Em busca do famoso peixarinho

8. Loba (Pequena Zahar), Roberta Malta e Paula Schiavon

Uma revisita ao conto da Chapeuzinho Vermelho, este livro, de Paula Schiavon e Roberta Malta, oferece uma perspectiva diferente, que mostra justamente a mãe como personagem da história. “Ela encoraja a filha a se aventurar em um espaço externo, fora de casa. É uma leitura bonita. Chama muito a atenção a iniciativa da mãe de dar esse espaço para a filha caminhar pelos próprios pés”, diz a editora Ana Paula. “É um livro em que todas as personagens são mulheres. É a avó, a mãe e a neta. O lobo, em vez de ser um lobo mau, é uma loba. O elemento feminino está muito presente e acho que isso fica...”, observa.

Loba

9. Contos de Fraldas (Companhia das Letrinhas), Tino Freitas

Ainda falando sobre releitura, outro exemplo é o livro Conto de Fraldas, de Tino Freitas. Ele reúne três contos. Um deles é a Branca de Neve, em que a mãe precisa sair de casa e pede para os Sete Anões cuidarem do filho. “É divertido ver como é o cuidado da criança e também é muito legal essa desconstrução da personagem clássica, imaginá-la depois de casar, tornando-se mãe e compartilhando os cuidados para que isso não pese apenas sobre ela”, explica a editora. 

Contos de fraldas

10. Aqui e aqui (Companhia das Letrinhas), Caio Zero

Embora a mãe não apareça, ela é a personagem central em Aqui e aqui, de Caio Zero. Para Ana Paula Tavares, é uma obra que aprofunda a reflexão sobre a importância das redes de apoio. Na história, entende-se que trata-se de uma mãe solo, já que o pai não está presente. Ela sai para trabalhar e, enquanto isso, uma vizinha, que é amiga dela, cuida do menino. “É um livro extremamente bonito, que fala sobre a maternidade de uma forma com que muita gente se identifica”, diz a editora. “O protagonista é a criança que tenta desvendar por que dorme em uma casa e acorda em outra”, conta. 

Aqui e aqui

11. A melhor mãe do mundo (Companhia das Letrinhas), Nina Rizzi

A Melhor Mãe do Mundo, de Nina Rizzi, traz uma história narrada do ponto de vista de um menino. Ele diz que a mãe dele é a melhor do mundo, porque faz a melhor macarronada, empina pipa com as crianças… Enfim, ele a idolatra. “No final, descobrimos que esta mãe está encarcerada. E não há nenhum tipo de juízo de valor no livro. Os personagens são retratados como aves, o que fica muito bonito nessa relação de aprisionamento, gaiolas. É uma maneira bem pouco convencional de retratar uma mãe”, opina Ana Paula. 

A melhor mãe do mundo

12. Quando você sai (Pequena Zahar), Gastón Hauviller

O pequeno narrador da história vai mostrando, por meio do texto e das ilustrações, o que acontece quando, por algum motivo, a mãe dele sai de casa e não está por perto. As emoções são contrastantes e fazem com que o leitor se entregue às cenas por um bom tempo. “Tudo o que acontece ali tem a ver, justamente, com a ausência temporária da mãe”, observa Ana Paula. O livro explora os complexos sentimentos e a forte conexão que existe entre mãe e filho. 

Quando você sai

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