“Um traço é crítico, pode ser cortante como uma faca, ou trazer um sorriso. A imagem tem um texto próprio”, diz Marilda Castanha, para o Blog Letrinhas, em uma videochamada capaz de aproximar São Paulo de Minas Gerais. O momento da entrevista, nas palavras dela, era “um estado de suspensão”. Entre idas e vindas do hospital, cuidando da mãe, de 97 anos, ela escavou uma brecha para falar de arte – “um bálsamo”, nas palavras dela mesma.
Do alto de três décadas de profissão, a artista compartilhou durante a conversa como nasceu ilustradora, a partir de uma eterna criança que se apaixonava pelos personagens que conhecia nos livros - que já quis se casar com o Príncipe Escamado e com o Capitão Rodrigo. Para a sorte dos leitores, Marilda se casou mesmo com o ilustrador Nelson Cruz, com quem vive e compartilha histórias todos os dias.
Marilda Castanha no Festival Literário Internacional de Belo Horizonte
No seu ateliê-casa em Santa Luzia, a pouco mais de 20 km de Belo Horizonte, ela segura uma xícara de café quente enquanto vai mostrando as ilustrações coladas na parede, protótipos de livros que vêm por aí, e as fatídicas listas de palavras que faz para cada projeto novo, em que enumera adjetivos e advérbios para guiar o percurso que as histórias pedem - um método todo seu. “Como se fosse um mapa mesmo”, ela conta.
Entre um objeto e outro, há uma pequena pilha colorida que chama atenção: são os desenhos livres que ela faz assistindo TV, ou distraída entre um compromisso e outro. No jargão artístico, são os tais “sketchbooks”, cadernos para criação desarticulada de objetivos específicos, onde se pode experimentar cores, técnicas e texturas. “Aqui estou brincando”, conta.
LEIA MAIS: A cor da saudade de Marilda Castanha
Uma trajetória percorrida pelas mãos
Desde 1992, quando publicou o primeiro livro-imagem, Pula, gato (Scipione), já foram dezenas de histórias, e mais de 30 anos do que ela prefere chamar não de “carreira”, mas sim de “ofício”. Pelo Grupo Companhia, publicou dezenas de livros, como o premiado A quatro mãos (Companhia das Letrinhas, 2017), criado para elaborar o luto do pai e prestar uma homenagem à relação com ele. A obra foi contemplada com o Prêmio Hors-Concours, da FNLIJ, em 2018.
Como ilustradora, assina O gato e o escuro (Companhia das Letrinhas, 2008), de Mia Couto, Amigos da onça (Companhia das Letrinhas, 2006), de Ernani Ssó, Contos de morte morrida (Companhia das Letrinhas, 2007) e O delírio (Companhia das Letrinhas, 2010). Para 2024, a autora está preparando um novo projeto, que chegará em breve pelo selo Companhia das Letrinhas: o livro ilustrado Meu nome, uma homenagem às crianças palestinas.
Ilustração do premiado A quatro mãos (Companhia das Letras, 2008), que mostra de forma sensível as muitas mãos passam pela nossa vida
Feito uma ourives de imagens e palavras, Marilda trabalha a seu modo, sem digitalização, enviando os projetos aos editores pelo correio. No tempo do fazer com as mãos, ela guia as ideias que saem da cabeça e vão até a ponta dos dedos, sem fazer curva em nenhum recurso tecnológico. “Eu não faço artesanato, mas preciso da artesania, daquilo que sai da ponta dos dedos; o cheiro, a cor, o ato de se sujar, o nosso trabalho é sensorial”, explica.
“Eu escrevo também como quem ilustra. Faço montagens com as palavras, em camadas e sobreposições. Cada livro pede uma gramática visual específica", Marilda Castanha, artista
Com a experiência de três décadas dedicadas a compor histórias, Marilda conta que está envolvida em múltiplos lançamentos por vir, como a ilustração do livro Profissões para Mulheres de Virginia Woolf, (editora Maralto), cursando Mestrado em Belas Artes e conservando uma inesgotável curiosidade por novas formas de contar. Quando tenta definir o porquê de continuar criando, lembra de uma brincadeira frequente do marido Nelson Cruz (que diz que “todos os livros foram escritos, menos um: o próximo”) e da canção As coisas, de Arnaldo Antunes, cuja letra diz: “As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor (...) As coisas não tem paz”.
“Um livro parado na estante está em paz, mas se eu abro, ele se sacode e me sacode", Marilda Castanha, artista
LEIA MAIS: Clássicos contemporâneos: quais são os livros infantis que ficam para sempre?
Da infância às infâncias - no plural
Marilda Castanha nasceu em Belo Horizonte, em 1964, ano do Golpe Militar. Consumir arte, naquele contexto, era mais que uma escolha subjetiva - era um gesto de resistência. A autora marca sua relação com a arte em três momentos principais: um primeiro entre a infância e adolescência, o segundo quando foi pela primeira vez à Feira do Livro Infantil de Bolonha, considerado o maior evento editorial da literatura infantil mundial, e terceiro com o nascimento dos filhos, que ressignificou seu contato com a infância.
O primeiro marco de sua relação com a arte se concentra na família onde cresceu que, segundo ela, não era exatamente de leitores, mas formada por algumas pessoas que gostavam muito de ler. Marilda morava com os pais, a avó materna – que tinha Parkinson e era cuidada pela mãe – um tio e mais três tias. Diagnosticado com esquizofrenia, o tio passava o dia lendo. “Era uma família diferente, por ter esse perfil da doença, mas que tinha a literatura como um escape”, relembra. Já uma das tias era o símbolo de incursão à oralidade e à cultura popular; como adorava contos de assombração, era para os braços dela que a autora corria para ouvir ‘histórias de boca’, como se diz.
Para o “tio Nego”, como o chamavam em casa, os livros eram o refúgio favorito, e foi ele o primeiro incentivador à leitura. Seu quarto era povoado por montes de revistas Seleções e O Cruzeiro. Ali, Marilda fez o primeiro contato com a História da Arte, devorando biografias e reproduções de arte – de Bosch e Picasso. Quanto aos livros, o vínculo com as bibliotecas públicas foi decisivo. Conhecê-las era o pretexto de autonomia oferecido pela mãe para que as filhas explorassem Belo Horizonte sozinhas. “Mamãe, muito sábia, quando queria ensinar a gente a andar de ônibus pela cidade, fazia nossa carteirinha na biblioteca, ia junto umas duas ou três vezes e dizia ‘agora vai".
Mais tarde, por volta dos 16 anos, por intermédio da irmã mais velha, Maria Inês, a ilustradora tomou contato com a literatura para as infâncias. No magistério, tanto a irmã quanto ela conheceriam dezenas de obras fundamentais, histórias que representaram o boom da literatura infantil brasileira dos anos 80. Nas tardes de sábado, frequentava a recém-inaugurada – e hoje histórica – Livraria Miguilim, espaço que teve papel importante na publicação literária no Brasil, reunindo alguns dos principais educadores, escritores e artistas da época, e que até hoje se mantém como palco de resistência artística em Belo Horizonte.
Lá, a jovem Marilda se entretia por horas a fio, empenhada na descoberta de artistas que seriam admirados e estudados nas décadas seguintes, como Mary e Eliardo França, Ana Raquel Campos, Lygia Bojunga, Bartolomeu Campos Queirós e Orígenes Lessa (que sempre estavam lá lançando seus livros) e, claro, a conterrânea Angela-Lago. “Tinha alguma coisa muito diferente acontecendo ali”, ela lembra de ter pensado, ao se deparar com narrativas sofisticadas não só pelo trato com a palavra, mas também com a imagem. “Eram livros lindos, que eu gostaria de ter tido na infância”. As múltiplas possibilidades da linguagem visual não só como expressão artística, mas também como narrativa, viraram uma paixão definitiva. “Foi uma inserção de livros para a infância quando eu já não estava na infância”. Daí a importância de algo que Marilda defende desde então: a relevância dos livros chamados “infantis” em todas as fases da vida.
LEIA MAIS: Memória de infância: quem eram nossas avós antes de serem mães
De leitora a artista
Dali para a escolha de uma profissão artística foi um caminho natural. Marilda Castanha entrou na Faculdade Belas Artes de Belo Horizonte em 1983, com o plano de se tornar restauradora, muito por influência da arte barroca tão presente no dia a dia em Minas Gerais. Porém, não passou muito tempo até se dar conta de que a fisgada dos livros infantis era mesmo um caminho sem volta.
Em 1985, por incentivo de Maria Antonieta Cunha – imortal da Academia Mineira de Letras, fundadora da Livraria Miguilim e, por curiosidade, mãe do escritor Leo Cunha – Marilda publica como ilustradora. Depois de receber dela quatro textos novinhos em folha e uma provocação para ilustrá-los, Marilda publica seu primeiríssimo livro, Tonico, o bode diferente, em parceria com a escritora Solange Avelar Fonseca Gontijo, publicado pela Editora Nacional. Essa aventura inicial provocou um empuxo para estudar mais. “Eu só tinha ideias, mas pensava ‘peraí, não estou pronta’”, conta.
Nesse mesmo período, quando estava no segundo ano da graduação, Marilda foi contratada como professora em uma escola de educação infantil da cidade paraense de Carajás, o que a fez trancar a faculdade por mais de um ano. A experiência diária de convívio com as crianças alterou, pela primeira vez, o modo de pensar o livro infantil, algo que voltaria a acontecer mais tarde, com o nascimento dos filhos Nino e Cecília – hoje com 20 e 23 anos. Nas palavras dela, foi “uma imersão de liberdade e exercício criativo”.
As concepções de literatura, infância e criação que ela trazia das pesquisas foram positivamente se transformando ao longo do convívio com as crianças. Mas o segundo marco de seu contato com a arte veio realmente com a maternidade. “Estudar a infância é importante, mas é preciso estar na infância. Quando meus filhos nasceram, olhei pro que eu já tinha feito e pensei o quanto aquilo era pesquisa, muito cabeça. Eles me desmontaram. Comecei a perceber, com eles, as diferentes nuances e camadas da infância”, diz Marilda, lembrando o papel “flutuante” das rotulações etárias nos livros. “Temos sempre que questionar o papel das faixas etárias. Embora a gente indique um livro para uma idade, outras crianças podem se interessar em outros momentos, é mutante. Ao mesmo tempo, há sim diferenças em assuntos e formatos que alcançam mais ou menos determinados grupos de crianças”.
A favor da maior bibliodiversidade possível na oferta de livros, ela conta que lia para os filhos Câmara Cascudo (o favorito era Couro de piolho), gibis da Turma da Mônica, e as aventuras em quadrinhos do Capitão Cueca, a depender da fase e dos interesses. “Tem que estar atento ao que as crianças gostam. O que eu costumo dizer é que nós nunca abandonamos os livros”, sintetiza a autora. “Para criar narrativa através das imagens, é preciso ler, fazer inferências, perguntas, deduções; algo que fazemos quando lemos poesia, quando levantamos os olhos da página para pensar ‘o que é isso?’”.
A disposição para adentrar, por meio da experiência, o universo desconhecido do que é ser criança – não por acaso, definido pelo pensador Jorge Larrosa como um “enigma” – configurou um ingrediente fundamental para a artista se compreender em um mosaico formado entre o desejo, a prática e o pensamento. Para alinhavar essas relações, ela cita Paulo Freire: “A educação é bancária”. Depositamos nas crianças, pouco a pouco, ensinamentos e aprendizados, e esperamos render.
LEIA MAIS: O afeto pela infância de Patrícia Auerbach e seus objetos brincantes
Reinvenções do traço de uma artista incansável
Outro marco formativo de Marilda Castanha – além da descoberta dos livros com o tio Nego, da oralidade com os contos de terror da tia, das expedições pela Miguilim e da chance de interlocução com as crianças, que foi revolucinada com os filhos – aconteceu em 1995. Pela primeira vez, Castanha foi à Feira de Bolonha, na Itália. Era uma das autoras convidadas em um ano em que o Brasil era o país homenageado do evento. Ela viajou sozinha, com boas expectativas, mas sem imaginar a dimensão do que encontraria lá. Entre o deslumbramento diante da imensidade de produções do mundo todo e uma incômoda sensação de que tudo já havia sido criado, veio um imediato ponto de virada. “Na volta, eu passava horas com o Nelson [Cruz], olhando para todos aqueles livros, estudando”. Ela lembra que não havia ainda, naquele momento, a elaboração que hoje é possível fazer, de um mercado internacional eurocêntrico, em que artistas brasileiros chegavam a ouvir, naquele período, que seus livros eram “muito étnicos”, como ela conta que aconteceu.
“Eu não sou uma autora ‘étnica’, sou brasileira", Marilda Castanha, artista
Então, a crítica que seria ao mercado voltou-se, naquele momento, ao seu próprio trabalho. “Eu só pensava ‘cadê a minha brasilidade?”. Um questionamento interno que mudou sua forma de se perceber como artista brasileira.
Alguns anos mais tarde, em 1998, a ilustradora viaja para um seminário de artes visuais, em que artistas foram convidados a desenhar florestas. “Mas eu não fiz floresta nenhuma, fiz algo extremamente barroco” ela brinca. “As tonalidades puxavam pro vermelho e azul, a própria figuração era um pouco surrealista, uma cidade que se transformava em uma mulher. Mas não tinha nada de floresta, só de onírico“. Depois dessa experiência, ao investigar como o território de origem pode aparecer nas criações, veio uma fase de pesquisa de referências internas. “Mesmo morando no país da maior floresta do mundo, não desenhei uma. Essas viagens me ajudaram a olhar para dentro do país, estando fora dele. Onde eu me coloco?”, perguntava-se.
Da busca pela identidade do traço, a artista começou a pesquisar artes indígenas e artes afrobrasileiras, e experimentou uma alteração de materiais, passando da aquarela para a tinta acrílica. Das investigações desse período nasceria o livro Pindorama, Terra das Palmeiras - Coleção História para contar histórias (Cosac Naify, 2008) - o livro teve uma primeira edição lançada em 1999, na editora Formato - que faz uma visita ao Brasil indígena, antes dos portugueses. A obra traz uma pesquisa da iconografia e dos registros feitos por naturalistas, além de artes produzidas pelos povos originários brasileiros, mostrando as diferenças entre Kayapós, Xavantes, Pataxós, Tupinambás e outras etnias.
Dos anos 90 para cá, Castanha mantém um rumo que não é só autoral, mas passional, algo que ela sintetiza em uma afirmação: “Para fazer arte e livro ilustrado, é preciso ter opinião”. Com esse critério em mente, ela diz ter atravessado cada uma dessas décadas de formas muito diferentes, observando de perto as mudanças no ramo. Se houve aquele tempo em que o mercado editorial brasileiro se referenciava principalmente na Europa para balizar o que é qualidade, hoje, ela reconhece que o caminho percorrido nas últimas décadas pelos artistas e agentes do complexo ecossistema de produção de livros no Brasil atestam a autonomia e evolução da arte literária para as infâncias. Com base nisso, defende não só o pensamento decolonial, que busca outras centralidades para as narrativas, mas também os movimentos de rever histórias que hoje são lidas de modo diferente de sua época. “O pensamento decolonial me dá uma direção: não é para aceitar tudo do jeito que sempre foi, não é para aceitar o cânone”, defende.
Dentre os tantos livros que habitam sua trajetória, Marilda destaca Agbalá: um lugar-continente (Cosac Naify, 2008), que ela define como “uma afirmação afrobrasileira”; e também o premiado Ops (Cosac Naify, 2011), republicado em 2021, em nova edição, pela Jujuba. O famoso “livro de uma palavra só”, como ela brinca, é representativo da potência dos encontros proporcionados pela literatura que se coloca em diálogo corpo a corpo com os leitores, como num jogo de montar. Não por acaso, essa característica interacional perpassa toda sua obra: o desejo de encontrar alguém, do outro lado do livro, que faça a história acontecer.
Atenta aos movimentos atuais da arte e da sociedade, Castanha não deixa de mencionar os livros que aprofundam a relação da humanidade com as plantas e os bichos. Em 2015, publica Sem fim (Editora Maralto), citado por ela como uma marca da preocupação da literatura infantil e dos livros ilustrados com as urgências socioambientais.
“Nós, humanos, esquecemos que somos natureza. Como diz o Ailton Krenak, ‘não quero o meio ambiente, quero o ambiente inteiro", Marilda Castanha, artista
Para ela, levar os diversos temas sensíveis às histórias que as crianças leem é um modo de retirar a infância de um lugar de idealização, assumindo a responsabilidade do adulto de mediar o mundo por meio de livros capazes de sensibilizar variados públicos etários. “A infância não é cor-de-rosa, até porque tem muita gente que nem pode ter uma”. Autora de uma série de textos da literatura mundial ilustrados para o público infantil, ela valoriza os cruzamentos entre leitores, e considera uma ilusão achar que uma coisa é só de um grupo etário ou de outro. “É um problema da sociedade achar que quando adquirimos a palavra estamos em outro patamar. A gente se alfabetiza para o texto verbal, e se ‘desalfabetiza para as imagens”, ela explica.
“Fazer livros adultos que sejam também para crianças (e vice-versa) permite mexer algumas placas tectônicas – para usar uma metáfora do deslocamento. Se as coisas estão hoje fora de lugar, é preciso nomeá-las", Marilda Castanha, artista
No que depender do interesse de Marilda Castanha em colocar ideias em movimento, as infâncias seguirão representadas, por meio de suas histórias, como uma expansão das relações possíveis com o mundo, e a necessidade coletiva de narrá-lo da forma mais diversa possível. Desde as histórias ouvidas dentro de casa, até os tesouros escondidos em uma biblioteca perto de nós. Os livros da autora, sejam os protagonizados por um bebê curioso com as brincadeiras do corpo, no caso de Ops, ou pelas mãos que nos conduzem em cada passo, em A quatro mãos, nos instigam a praticar a infância como atitude filosófica e artística. Uma infância que pode ser acessada por qualquer pessoa, quanto mais se mantiverem preservados o assombro e a vontade de perguntar. Para destacar o ponto de vista da criança, a autora cita Manoel de Barros: “a criança erra na gramática, mas acerta na poesia”. Diz Marilda: “A beleza de fazer livro é muito essa, uma outra pessoa vai ver algo que eu não vi.”
LEIA MAIS: As perguntas difíceis das crianças e como os livros podem ajudar