Uma das intelectuais contemporâneas mais importantes do mundo, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, 46, é escritora, doutora em Humanidades, ativista de pautas raciais e de gênero, referência para Beyoncé, fã de Xênia França, mãe e mulher igbo. Agora, é também escritora de literatura infantil. O lenço de cetim da mamãe (Companhia das Letrinhas, 2024), traduzido pela poeta Nina Rizzi e ilustrado pela artista congolesa-angolana Joelle Avelino, é sua primeira obra pensada para crianças, consolidando um caminho literário que começa aos quatro anos, quando ela se tornou leitora – de livros, é preciso dizer, prioritariamente estadunidenses e britânicos.
A autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie
No livro, publicado originalmente em inglês como Mama’s Sleeping scarf (Knopf), a menina Chino faz do lenço de cetim da mãe, que sai para trabalhar, um instrumento de imaginação e afeto. Ela adora sentir a textura sedosa do lenço e circular com os dedos os grandes círculos que o estampam. Também adora fazê-lo de cobertor ou usá-lo para brincar de esconder. Inspirado na rotina com a filha, o livro provoca o leitor a ver significado e beleza nos pequenos detalhes do dia a dia com uma criança, lembrando a importância formativa das referências que apresentamos a elas.
Com delicadeza, Chimamanda usa o lenço, um objeto marcante na identidade de diversas culturas africanas, como pretexto para falar das possibilidades de inventividade tão próprias da infância, da exploração livre e despretensiosa dos objetos mais ordinários, mas também de vínculo, pertencimento, família, tradição. O objeto usado pela mãe em sua rotina de cuidados passa também para a filha. Esse afeto transmitido de geração em geração expõem o que a escritora chama de “ecossistema do feminismo”, ou seja, as diversas maneiras como a busca por uma vida mais justa para as meninas acontece na vida real.
Chimamanda costuma declarar em entrevistas que herdou da bisavó sua primeira referência do que é igualdade, e reconhece nas mulheres de sua família, principalmente na mãe, os exemplos do que ela chama de “feminismo do dia dia”. Para a autora, a luta por direitos e equidade pode estar em gestos simples, como a de uma mãe cuidando dos cabelos da filha enquanto as responsabilidades pela criança são divididas na família, assim como mostra seu primeiro livro infantil.
Capa de O lenço de cetim da mamãe (Companhia das Letrinhas, 2024), primeiro livro de Chimamanda
Autora de obras traduzidas em mais de 30 idiomas – entre publicações teóricas, contos e romances best-sellers internacionais - Chimamanda é sinônimo não apenas de literatura, mas também de pensamento crítico. O New York Book Reviews, suplemento literário do New York Times, definiu-a como a "a mais proeminente de uma nova geração de autores anglófonos que têm tido sucesso em atrair leitores para a literatura africana".
Ao lerem seus livros – mesmo que eles falem de guerras, violências e perdas – o leitor pode experimentar um conforto, típico de quem conversa com um velho amigo. Para além dos nomes pomposos que seus tantos ofícios costumam agregar, Chimamanda é, acima de tudo, uma contadora de histórias, que se fia na capacidade infinita da narrativa para, ininterruptamente, reconstruir mundos incompletos.
“O que os escritores africanos fizeram por mim foi isso, me salvaram de ter uma história única", Chimamanda Ngozi Adichie, em trecho do livro O perigo de uma história única (Companhia das Letras, 2019)
Os primeiros anos da autora e sua rica formação cultural
Chimamanda nasceu na Nigéria, em 1977, na cidade de Enegu, território que voltou a ser capital do Estado homônimo após a guerra civil nigeriana, em 1970. Trata-se de um município de pouco mais de meio milhão de habitantes, uma região onde predomina um dos três grupos étnicos nigerianos mais expressivos, os igbos. Enegu é um termo que deriva da combinação de duas palavras no idioma igbo, "enu" e "ugwu": em tradução literal, "topo da colina".
Mas não é essa a única geografia de seus primeiros anos de vida. Ainda na infância, a autora se mudou para uma cidade universitária, Nsukka, no leste da Nigéria, onde cresceu. A proximidade da Universidade da Nigéria e a aura de conhecimento que pairava em sua família cimentaram uma identidade intelectual misturada, como também é a sua própria origem cultural. Filha de um pai professor e de uma mãe que foi a primeira mulher a ocupar a universidade em um cargo administrativo, Chimamanda viveu desde cedo a valorização do estudo e da formação científica e humanística, representada pelas principais figuras de importância em seu desenvolvimento. Um privilégio que ela soube ampliar, aprofundando desde menina seu interesse pela literatura.
Quinta filha em uma família de seis irmãos, ela contou recentemente, em entrevista no programa Roda Viva (TV Cultura), que se considera uma pessoa de sorte em termos familiares, não apenas pela consciência ancestral desenvolvida desde cedo, com um cotidiano atravessado pela língua africana, mas em também por ter repertório cultural e acesso a linguagens artísticas diversas.
“Cresci em um ambiente cosmopolita, nos faziam ler livros, mas também tínhamos raízes nas nossas origens", Chimamanda Ngozi Adichie em entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura)
Curiosamente, o início de seu percurso formativo foi na área de Biológicas, em Medicina e Farmácia. Mesmo durante o curso – ao qual ela se dedicou durante um ano e meio – a conexão com as palavras e o compromisso ético pela justiça social já se afirmava. A autora começou sua trajetória no ofício com o texto como editora da revista The Compass, conduzida por estudantes de medicina.
Ela teve o privilégio de passar por algumas das mais importantes universidades norte-americanas. Aos 19 anos, ela se mudou para os Estados Unidos para estudar na Universidade de Drexel. Daí em diante, a imersão acadêmica se aprofundou. Dessa vez, o caminho seria pela Comunicação e pela Ciência Política. Em 2003, ela se tornou Mestre em Escrita Criativa pela Universidade Johns Hopkins e, em 2008, Mestre em Estudos Africanos, na Universidade de Yale. Em 2011, a Universidade de Harvard concedeu a ela uma bolsa de estudos. Em 2016, a autora finalmente alcançou o título de Doutora em Humanidades, também pela Johns Hopkins.
Chino e sua mãe, personagens de O lenço de cetim da mamãe
Ler e escrever o mundo
Herdeira das tradições orais africanas e vivendo há mais de 20 anos entre a Nigéria e os Estados Unidos, Adichie é hoje uma tradutora de realidades sociais diversas, que articula temas contemporâneos e históricos com a generosidade de quem prepara uma refeição. Dentre seus livros mais destacados de Chimamanda, estão Meio sol Amarelo (Companhia das Letras, 2017) – vencedor do Orange Prize, adaptado ao cinema em 2013 – Americanah (Companhia das Letras, 2014) e Hibisco roxo (Companhia das Letras, 2011).
Mas nem sempre foi assim. De leitora precoce, ela passou a autora precoce. Chimamanda começou a escrever por volta dos sete anos. Com giz de cera colorido, ela rabiscava suas primeiras criações, que a mãe lia com interesse. Essa produção refletia a limitação do mundo como ela conhecia, pelas obras que chegavam em suas mãos. “Todos os meus personagens eram brancos e de olhos azuis, brincavam na neve, comiam maçãs e conversavam muito sobre o tempo, como era lindo o sol ter saído”, ela conta. A incorporação dos elementos do dia a dia veio mais tarde, quando as mangas, tão comuns na sua infância, entraram no lugar das maçãs. A neve, que ela nunca tinha visto, foi saindo de suas histórias também aos poucos, dando lugar a paisagens mais áridas. “Papai está preparando uma vitamina na cozinha. Com frutas frescas, doces e saborosas. A casca das bananas é amarela e a casca das mangas é verde”, ela escreve em O lenço de cetim da mamãe.
Não por acaso, a habilidade de trazer seu próprio mundo para dentro dos mundos que cria nos livros perdura até hoje. Em uma das piores fases da pandemia de Covid-19, Chimamanda ganhou notoriedade em uma temática incomum em sua trajetória, mas incontornável à experiência humana: a morte. O livro Notas sobre o luto (Companhia das Letras, 2021) é uma elaboração autobiográfica da morte da figura paterna e, logo depois depois, tornou-se também o lugar para onde ela própria voltaria para suportar a morte da mãe. Em um intervalo de nove meses, a escritora perdeu ambos.
Atravessar dois lutos pessoais em um momento de milhões de mortes coletivas resultou na criação de uma obra com dimensões socioculturais, que reflete sobre a finitude como um fio comum da humanidade. “Não importa se quero mudar, porque mudei”, escreve ela. “Uma nova voz está saindo da minha escrita, cheia da proximidade que sinto com a morte, da consciência da minha própria mortalidade, tão finamente tecida, tão aguda. Uma nova urgência. Uma impermanência no ar.”
A capacidade de ler as situações, sejam elas íntimas ou privadas, e narrá-las com uma voz lúcida e propositiva, é um dos trunfos da produção da autora, e aparece com força renovada em sua literatura para crianças.
Histórias nada únicas
Construídas com uma linguagem acessível e ao mesmo tempo multidisciplinar, de um dedicado apuro ético e histórico, as palavras de Chimamanda têm um alcance que ultrapassa as páginas dos livros. É de sua autoria um dos TEDx Talks mais assistidos do mundo: O perigo de uma história única (The danger of a single story), de 2009, contabiliza mais de 13 milhões de visualizações no Youtube. Em 2019, a palestra chegou aos leitores em formato de livro, com a publicação de O perigo de uma história única, traduzido por Julia Romeu.
Em 2021, as crianças brasileiras puderam ter acesso à primeira edição de uma obra sua também voltada ao público infantil, porém, um texto de não ficção. Sejamos todos feministas - Edição de luxo ilustrada (Companhia das Letrinhas) ganhou o país em uma publicação ilustrada pela artista baiana Aju Paraguassu, e traduzida por Christina Baum.
Assim como O perigo de uma história única, o manifesto transformou-se em um livro de mesmo nome, e teve sua origem também em uma conferência, proferida no TEDxTalks em 2013, We should all de feminists. Juntas, as duas palestras de Chimamanda já somam mais de 20 milhões de visualizações.
Nos dois textos, assim como em toda a obra de Chimamanda, especialmente os mais conhecidos, há uma defesa da ideia de que aquilo que somos enquanto sociedade é uma construção coletiva, resultado de nossas interações familiares, sociais e educativas, daí a importância de cuidarmos de como falamos, como agimos e reagimos . “A cultura não faz as pessoas, as pessoas fazem a cultura”, ela escreve.
Em O lenço de cetim da mamãe, esse pensamento também aparece. Diante das crianças, a autora mostra que o dia a dia consolida um modo de ser, e isso passa a significar muita coisa na mentalidade de quem está se construindo como pessoa. Se em Para educar crianças feministas ela escreve “Ensine a questionar a linguagem”, dessa vez, a escritora mostra como esse aprendizado acontece na prática. O pai cozinha, a mãe trabalha, os avós também cuidam dela e brincam junto; às vezes, tudo isso se embaralha, e a personagem sempre é acolhida e ouvida. Um retrato de família que não centraliza as responsabilidades e permite à criança experimentar a infância a partir de variadas figuras de afeto.
A escrita por um mundo mais afetuoso
Como ela conta em Sejamos todos feministas, a escritora tinha 14 anos quando ouviu a palavra “feminista” pela primeira vez. Naquela altura, a pequena Chimamanda ainda não sabia que esse termo poderia significar tantas coisas, a depender de quem utiliza, como e por quê. Ainda que tenha saído da boca de seu melhor amigo na época, a palavra saiu como uma ofensa: “Você é feminista!”.
Anos mais tarde, ela ouviu de uma professora que ser feminista era “antiafricano”. Foi a literatura que a ajudou a atravessar ideias alienantes como essas. “Eu não começo minhas conversas com raiva, mesmo se estiver com muita. A raiva aliena as pessoas”, disse Chimamanda, em resposta à filósofa e escritora Djamila Ribeiro, na referida entrevista no programa Roda Viva. No livro Sejamos todos feministas, ela afirma que “todos deveríamos estar com raiva”.
Durante o percurso da autora, das conferências aos livros, passando pelas oficinas de escrita que ela ministra na Nigéria e nos Estados Unidos, há um cuidado em validar e elaborar a esse sentimento, para que a injustiça das desigualdades não se petrifique em melancolia ou apatia, mas se transforme em ação. O lenço de cetim da mamãe, ao chegar nas crianças e suas famílias, é uma manifestação carinhosa nessa direção: conversando com as gerações mais novas, para transmitir o afeto às gerações futuras. Uma história para que as crianças saibam reconhecer e valorizar suas próprias ancestralidades, diferenças e histórias nada únicas.
(Texto: Renata Penzani)