
Exposição histórica celebra os 30 anos de Lalau e Laurabeatriz na literatura
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Conhecida como “Grande Dama do Samba”, Yvonne Lara da Costa (1921-2018) caiu nas graças do povo brasileiro como Dona Ivone Lara. Um nome que se tornou símbolo de nossa cultura e que abriu alas para que várias mulheres tivessem espaço na roda de samba. Com sucessos como ‘Alguém me avisou' (Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininha...)’, Dona Ivone Lara dispensaria apresentações, não fossem as tantas vidas da artista – muitas delas ainda pouco conhecidas. Para a sorte dos sambistas - e dos leitores - alguém se aventurou a contá-las, trazendo facetas que que pouca gente conhece. E esse alguém é Jacques Fux, autor de Dona Ivone Lara e o sonho de sambar e encantar (Companhia das Letrinhas, 2024).
Ilustração reimagina Ivone aos nove anos no colégio interno em Dona Ivone Lara e o sonho de sambar e encantar (Companhia das Letrinhas, 2024).
No livro, Fux nos conduz por cenários como os bairros de Botafogo e da Tijuca, onde Ivone nasceu e cresceu – respectivamente –, a Escola Municipal Orsina da Fonseca, internato que a recebeu aos nove anos e que foi também onde conheceu seu primeiro instrumento musical: o orfeão. A obra é ilustrada pela artista paulistana Flávia Borges, ilustradora de Manual de penteados para crianças negras (Companhia das Letrinhas, 2022), Cinderela e o baile dela (Companhia das Letrinhas, 2023), entre outros.
Capa de Dona Ivone Lara e o sonho de sambar e encantar (Companhia das Letrinhas, 2024)
Dona Ivone Lara foi pioneira nas múltiplas frentes onde atuou ao longo de uma carreira diversa, que passou da enfermagem à música, das clínicas às avenidas carnavalescas. Ela foi capaz de mudar o rumo não só da presença feminina no samba, mas também da luta antimanicomial e da humanização do tratamento de pessoas com deficiência no Brasil. Fux também tem a habilidade de ser múltiplo, combinando diferentes talentos: é psicanalista, professor, tradutor e pesquisador. Graduado em matemática, ele é mestre em computação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) além de doutor em teoria literária pela Universidade de Campinas (Unicamp).
Mergulhar na vida de Dona Ivone Lara não foi a primeira produção biográfica de Fux: ele também escreveu a história da inglesa Mary Anning, paleontóloga que subverteu curso da História Natural do século XIX, ao desafiar a influência do patriarcado e da religião na ciência, a partir de achados fósseis até hoje considerados fundamentais para a compreensão dos dinossauros. O livro Mary Anning e o pum dos dinossauros (Companhia das Letrinhas, 2022) é ilustrado pelo quadrinista Daniel Almeida, e traz não só a história dos répteis extintos, mas o percurso de uma mulher que redefiniu as bases de toda uma área do conhecimento.
Fux é um autor que mergulha nas biografias ficcionais – ou seria na ficção biográfica? Seus livros buscam perpassar o calendário de vidas públicas, mesclando o acontecido e o imaginado, e lembrando que, entre um e outro, há mundos por conhecer. Para ele, "até mesmo as biografias estão sujeitas a descobertas e invenções", como o próprio conta em entrevista concedida ao Blog Letrinhas (que você confere na íntegra mais adiante).
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Ivone Lara era filha da costureira Emerentina Bento da Silva com o violonista João da Silva Lara. Eles se conheceram durante um carnaval no Rio de Janeiro. Sim, a musa do gênero musical mais popular do Brasil é fruto, ela mesma, de uma roda de samba genuinamente carioca. Também foi esse o cenário onde se desenvolveu uma das maiores artistas do país. “Foi numa roda de samba / Que eu juntei-me aos bambas pra me distrair”, diz uma das canções mais famosas de sua autoria, “Alguém me avisou”, que correu o mundo na voz de Maria Bethânia.
Naquele mês de abril de 1921, quando a artista nasceu, a canção considerada disparadora da origem do samba na capital do Rio tinha apenas cinco anos de vida: “Pelo telefone”, de Ernesto dos Santos, conhecido como “Donga”, Mauro de Almeida e Sinhô. A letra do samba atravessou os tempos não apenas como a canção que inaugurou o ritmo no país, mas, como aconteceu com muitas músicas do cancioneiro popular brasileiro, também como um registro da violência contra a mulher.
Dona Ivone Lara e o sonho de sambar e encantar mapeia a coragem com que a artista driblou os obstáculos de toda uma cultura, e atesta como a História é feita, fundamentalmente, por mulheres. Como dizem os versos de “Acreditar”, samba escrito em parceria com Délcio Carvalho: “A vida foi em frente / E você simplesmente não viu que ficou pra trás”.
“Ivone era genial e esperta. Sabia que suas melodias eram maravilhosas e que poderiam mudar a história do samba. Ela tinha o sonho secreto de ver todos cantarolando suas melodias nos ônibus, nos carros, nas ruas e nos chuveiros.” – Trecho do livro Dona Ivone Lara e o sonho de sambar e encantar
Dona Ivone Lara ilustrada na icônica apresentação do Copacabana Palace, em 1978
Ao lado da psiquiatra Nise da Silveira, Ivone ajudou a aplicar a musicoterapia, trazendo instrumentos e cantoria para o tratamento de saúde mental – até então caracterizado por procedimentos invasivos e controversos, como eletrochoques e lobotomia. Aos 56 anos, ela se aposentou como assistente social. Dali para frente, pôde se dedicar exclusivamente ao samba. Nos anos 60, ela foi a primeira mulher a assinar a composição de um samba-enredo, “Os cinco bailes da história do Rio”, na Escola de Samba Império Serrano.
“É importante resgatar histórias escondidas por conta do machismo cultural e estrutural. Ivone Lara teve que deixar seu primo assinar seus sambas pois não acreditavam – e nem permitiam – que uma mulher pudesse escrever enredos tão bonitos e complexos.” (Jacques Fux, escritor)
Jacques Fux é autor de diversos livros lidos por crianças e jovens. Em 2022, além de Mary Anning e o pum do dinossauro, Fux publicou As coisas de que não me lembro sou (Aletria), e em 2023, As fábulas do fabuloso fabulista Joãozito (ÔZé), ambas inspiradas na vida do escritor João Guimarães Rosa.
"A literatura jovem permite – e até convida – e a escrever de forma mais leve e lúdica, algo que definitivamente estávamos (e ainda estamos) precisando”, Jacques Fux, escritor
Ele também é autor de diversos livros para adultos, como a coletânea de novelas sobre loucura, Meshugá (José Olympio, 2016), a obra de não ficção Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo (Perspectiva, 2020), e o romance Antiterapias (Scriptum, 2014), vencedor do prêmio São Paulo de Literatura. Sua trajetória, repleta de meandros por áreas do conhecimento distintas, revela a curiosidade caudalosa que move a busca por personagens incomuns, dentro e fora da vida real.
Em entrevista ao Blog Letrinhas, o autor relembra como a pandemia o impulsionou a reafirmar a importância de narrar histórias, conta como surgiu a ideia de escrever a vida da sambista e compartilha também suas pesquisas para desenvolver uma escrita de biografia que seja capaz de cativar diversos públicos. Confira:
Jacques Fux: Durante a pandemia, resolvi me dedicar aos livros para jovens de todas as idades. Era um momento difícil para todos e achei necessário inspirar e sonhar com histórias-biográficas de sucesso e realizações, embora com percalços.
Além disso, a literatura jovem permite – e até convida – a escrever de forma mais leve e lúdica, algo que definitivamente estávamos (e ainda estamos) precisando. Essa coleção tem me dado alegria e tenho recebido sorrisos dos leitores.
Jacques Fux: Sempre me inspirei nas histórias de superação, genialidade e que proporcionaram mudanças positivas na sociedade. Sim, todos são humanos e cometem erros – e isso aparece nas biografias também. Mas as realizações foram (e são) fundamentais para uma maior consciência. E sou admirador de todos os que biografei.
Jacques Fux: Acho que o escritor deve beber de todas as fontes que puder. Quanto mais histórias e saberes conseguir ler e conhecer, melhor para engrandecer a sua escrita. Adoro as histórias da matemática, computação e física, e elas sempre aparecem nos meus livros.
Jacques Fux: Eu procuro trazer sempre trazer histórias, casos e acasos divertidos e inusitados para compartilhar com as crianças e com os adultos. Gosto de brincar e de também encantar as histórias. Acho que isso nos aproxima dos leitores.
Jacques Fux: Eu não acredito muito em “gêneros” literários e “não-ficção”. Os livros Mary Anning e o pum dos dinossauros e Dona Ivone Lara têm um “aviso” dizendo que até mesmo as biografias estão sujeitas a descobertas e invenções. Então, apesar de buscarmos pela verdade, no fundo há sempre alguma invenção ou “ficção”, não para mudar e falsear a história, mas justamente pela limitação da memória e também de contar/narrar a vida de forma direta.
Jacques Fux: A filha de um amigo foi a melhor crítica literária que já tive. Ela, com seus 7 anos, chegou muito séria após a leitura do Mary Anning, e me disse: “adorei o livro, mas você falou muito pouco de puns”.
“Adoro ouvir os jovens leitores – a sinceridade extrema e alegria verdadeira de ler (ou de largar) o livro", Jacques Fux, escritor
Jacques Fux: Sim! Se são escritos de qualidade, sem menosprezar a inteligência das crianças, podem encantar pais e filhos. As minhas biografias são assim: profundas, completas, engraçadas e divertidas. Recebo muitos feedbacks de pais que adoraram.
Jacques Fux: Escrever com todo rigor científico e sem erros. Embora sejam textos literários, gosto sempre de passar os livros para algum “expert-acadêmico” no assunto, para que não haja problemas.
Jacques Fux: Acho que é importante resgatar histórias esquecidas e escondidas por conta do machismo científico, cultural e estrutural. Mary Anning fez importantes descobertas “roubadas” pelos cientistas homens. Ivone Lara teve que deixar seu primo assinar seus sambas pois não acreditavam – e nem permitiam – que uma mulher pudesse escrever e criar enredos tão bonitos e complexos. Essas biografias têm algo de muito importante: o narrador não é isento (como deveria ser um “biógrafo” oficial e “normal”). Ele coloca o dedo na ferida, “xinga” os personagens que cometeram racismo, que roubaram descobertas, que foram vis e mesquinhos. Acho que isso aproxima o leitor das possibilidades infinitas e da literatura – e de como a ficção pode colocar um dedo na realidade.
Jacques Fux: Sim! A importância da “ficção” e da literatura é colocar um dedo na “realidade” e proporcionar mudanças. Meus leitores, assim como os comentários do narrador, não vão passar o pano nos “crimes” cometidos pela sociedade em função do machismo.
Jacques Fux: Li algumas biografias já escritas. Li e estudei também vários trabalhos acadêmicos (artigos, teses, dissertações) sobre ela. E me aprofundei nas suas músicas para me inspirar.
Jacques Fux: É sempre longo o processo de pesquisa e escrita. Acho que tudo demorou uns 2 anos.
Jacques Fux: Sim. A literatura pode colocar o dedo na ferida, mas ela não deve ser panfletária jamais. A literatura é para pensar, refletir, elaborar.
Jacques Fux: Estarmos atentos aos problemas de saúde das crianças e da sociedade.
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