Tradução: o espaço entre a transposição e a criação de histórias

22/08/2024

Lapidar, burilar, e até demolir - quando preciso for. Esses verbos foram utilizados pelo tradutor André Czarnobai para descrever seu trabalho. Parece até que estamos falando de engenharia ou construção civil, mas a matéria-prima aqui é literatura mesmo. Mais especificamente, a tradução de livros infantis.

Ilustração de 'Uns e outros', de Dipacho

Os tuiuiús, protagonistas de Uns e outros (Companhia das Letrinhas, 2024), de Dipacho, não são aves conhecidas na Colômbia, país de origem do autor. Mas por aqui não precisam sem apresentadas

Escritor, roteirista e consultor criativo, Czarnobai é tradutor do cartunista norte-americano Dav Pilkey no Brasil. As coleções best-sellers O Homem-Cão (Companhia das Letrinhas) e Capitão Cueca (Companhia das Letrinhas) passaram pelas suas mãos, assim como as aventuras de O Clube do Pepezinho (Companhia das Letrinhas). O esforço mobilizado para verter uma história de um idioma para outro requer habilidades engenhosas que, não por acaso, cabem mesmo em palavras como essas: lapidar, burilar, demolir. 

Mas quando exatamente acontece uma coisa ou outra? Como a tarefa de traduzir o texto, combinado com a imagem, acontece particularmente nos livros infantis? Qual a importância da tradução direta, aquela que é feita a partir da língua de autoria? Conversamos com quatro tradutores da Companhia das Letras para entender como funcionam os processos de tradução, trazendo exemplos concretos para os leitores poderem visitar por dentro os prazeres e as dificuldades de escrever entre duas línguas. Com experiência em diferentes idiomas, gêneros narrativos e abordagens de tradução, Nina Rizzi, Julia Bussius, Sofia Mariutti e André Czarnobai trazem visões diversas sobre o que é traduzir literatura infantil. 

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Tradução: o ofício de entrelaçar línguas, culturas e as diferentes linguagens do livro

O tradutor Paulo Rónai escreveu que “traduzir é a maneira mais atenta de ler”.  Quando a narrativa acontece em pelo menos duas linguagens diferentes, como é o caso da maioria dos livros infantis, e mais ainda no caso dos livros ilustrados, em que as imagens e as palavras são indissociáveis, aí sim é que o tradutor precisa se colocar como um verdadeiro escultor de histórias. É ele quem escolhe onde e por que fazer as tais “lapidações” e “burilações”, sem perder de vista o sentido original da narrativa.

 

Livros ilustrados infantis são os mais difíceis de traduzir, na minha opinião, empatados com a poesia – mas com um grau levemente maior de dificuldade justamente porque, muitas vezes, também são escritos em rimas e outros recursos poéticos. (André Czarnobai, tradutor e escritor)

 

“Os textos para infância possibilitam mais criatividade por parte da tradução”, diz a poeta, historiadora e professora Nina Rizzi, autora de A melhor mãe do mundo (Companhia das Letrinhas, 2024) e tradutora de língua inglesa e espanhola. Dentre os artistas que ela trouxe para a “língua brasileira”, como ela mesma diz, estão Traci N. Todd com Nina, uma história de Nina Simone (Pequena Zahar, 2022), Dipacho com Uns e o outros (Companhia das Letrinhas, 2024) e Roser Rimbau com A carta de Moussa (Brinque-Book, 2022). 

“Tudo que é ‘criativo’ não deve modificar o que a pessoa que fez o livro quis dizer”, afirma Nina. Ou seja, se o tradutor também cria e recria, deve ser cuidadoso com a origem e o destino da obra, sem se desviar da rota planejada.

A busca por manter o sentido entre texto e imagem

Na tradução de literatura ilustrada, as ilustrações e outros elementos pictóricos (como balões e vinhetas, comuns nas histórias em quadrinhos, por exemplo) também são um texto a ser traduzido. Quando perguntado sobre os desafios de traduzir as obras de Dav Pilkey, Czarnobai aponta as características que "dificultam muito a vida do tradutor". A primeira é que se trata de uma obra em quadrinhos, um texto que só funciona ilustrado. A segunda é a grande quantidade de trocadilhos. E  terceira é precisamente a combinação entre esses dois itens, que formam o  trocadilho visual. "Um exemplo bastante fácil de entender como isso se dá na prática é a tradução, por exemplo, de uma página onde um personagem usando uma camiseta vermelha faça um trocadilho usando a palavra "vermelho", que tem oito letras em português, mas apenas três em inglês (“red”), além de, claro, servir como base para outros trocadilhos", conta André. Ele explica que haveria alguma margem de manobra se a ilustração não estivesse presente. "Como frequentemente o leitor está vendo o que o autor está dizendo por conta dos desenhos que ilustram a história, fica muito mais difícil pensar em soluções que caibam na página e façam sentido para quem está lendo. Eu adoro traduzi-los justamente por isso: são difíceis. Para um tradutor, não existe nada melhor que um desafio, para testar e aprimorar suas habilidades", argumenta.

Quando falamos em tradução, é  preciso levar em conta que os efeitos de sentido precisam ser ajustados entre todos os aspectos da edição, do verbal ao visual. E como fazer isso em livros infantis? “Você tem que se concentrar no que pode criar de novo, nas 'abundâncias' que podem ser criadas, citando o Antoine Berman [filósofo e crítico francês, conhecido nos estudos da tradução], para não ficar melancólico com o que se perde”, explica Sofia Mariutti, autora de Vamos desenhar palavras escritas? (Companhia das Letrinhas, 2023) e tradutora de nomes importantes na tradição dos livros ilustrados, como Jutta Bauer, autora de O anjo da guarda do vovô (Companhia das Letrinhas, 2024), Antje Damm de A visita (Companhia das Letrinhas, 2016) e Jens Rassmus de A orquestra da lua cheia (Companhia das Letrinhas, 2013).

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Outra cultura, outras referências

"É preciso conhecer a língua de origem e também muito bem a nossa própria língua para buscar soluções alternativas, no caso das expressões idiomáticas. Acho muito positivo, se possível, manter alguns traços culturais da língua de origem, em pratos de comida, nomes, topônimos, para que os leitores todos, crianças e adultos, aprendam alguma coisa juntos, se aproximem mais da cultura de origem. Mas nem sempre dá pra fazer isso", pontua Sofia. Tanto do alemão quanto do inglês, as traduções que ela assina para a Companhia das Letras foram articuladas a partir da língua original, o que exigiu dela não só uma atenção às referências culturais dos autores, mas também dos potenciais leitores.

 “No A visita, optei por manter o nome do protagonista em alemão, Emil. Porque é um nome pronunciável para o leitor brasileiro, parecido até com Emílio”, exemplifica. Fazer escolhas dessa natureza, que interferem na criação do autor, confiando na legibilidade e acolhida do texto, é uma prática comum para os tradutores. Em traduções diretas, há menos interferências culturais entre a ideia original e os leitores de línguas estrangeiras, uma vez que a acomodação de referências considera apenas dois idiomas.

 

[Na tradução], algumas coisas se perdem e outras se ganham, sempre. (Sofia Mariutti, poeta e tradutora)

 

Para Nina, embora os textos para a infância possibilitem mais criatividade por parte da tradução, não significa que o texto seja retalhado ou mude de sentido. "Tudo que é "criativo" não deve modificar o que a pessoa que fez o livro quis dizer, são recursos que usamos para dizer a mesma coisa, mas de outra maneira, para que haja mais fluidez e prazer na leitura da obra". Ela cita uma adaptação feita na tradução de Uns e outros, de Dipacho. No original, em espanhol, há um texto informativo no final, explicando sobre os jaburus, os pássaros que são personagens da narrativa . "O autor fala que são animais quase desconhecidos, e na publicação brasileira eu sugeri uma mudança mais ou menos assim: 'Embora quase desconhecidos em outras partes do mundos, no Brasil o jaburu, também conhecido como tuiuiú, é a ave símbolo do Pantanal'". 

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Tradução também é território de invenção

Ilustração de 'Eu grande você pequeninho'
O ofício da tradução requer não só compreender uma língua estrangeira, mas toda a cultura em que ela está inserida, com seus contextos variados. Por isso, quem traduz é um coautor – oculto e vigilante –, com o mérito extra de acrescentar ao texto original detalhes que podem ampliar a leitura. Estamos falando de mudanças que ocorrem não só na estrutura da linguagem – como rimas ou aliterações e assonâncias, que consideram sonoridade e ritmo –, mas também no trato de símbolos culturais que sejam familiares ao leitor. Quando toma contato com uma obra, seja de ficção ou não, o tradutor necessariamente interfere nela, pois precisa fazer escolhas conscientes, como inventar ou adaptar nomes de personagens, referenciar lugares, comidas, objetos e o que mais aquela determinada história contiver. 

Cada alteração de tradução pode acontecer de acordo com as necessidades do próprio texto, da coesão narrativa demandada pela obra e do contexto em que o livro está inserido, como as escolhas editoriais e destinações de mercado. Seja como for, o tradutor é quem tem, primeiro, a sensibilidade de decidir por este ou aquele caminho no momento em que uma história ganha outro idioma. “Preparação, revisão e edição fazem muitos ajustes, e muitas questões acabam se resolvendo ao longo desse processo, por obra de uma ou outra dessas várias partes que somam para chegar ao produto final”, explica André.

Nina Rizzi dá um exemplo recente que ajuda a visualizar como essa lida tradutória, que equilibra pelo menos duas culturas distintas, acontece na prática. Quando traduziu O lenço de cetim da mamãe (Companhia das Letrinhas, 2024), primeiro livro infantil da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o desafio da tradução-criação começou logo na capa. Isso porque o “personagem” central da história é um objeto cujos significados (simbólicos, sociais, políticos) variam entre uma cultura e outra. Na Nigéria, assim como em outros países da África, os lenços são mais do que um adorno - são identidade, tradição e símbolo do cuidado que passa de geração em geração. “O título original é ‘Mama's Sleeping Scarf’, que, traduzido literalmente, seria ‘O lenço de dormir da mamãe’. O bacana é que essas escolhas não são solitárias, mas envolvem toda a equipe que trabalha no livro, como revisores, preparadores e editores que também fazem suas sugestões para que o resultado seja o melhor possível”, conta Nina. 

Por conta de um cuidado aparentemente simples, como acrescentar no título o material do tecido, o leitor fica sabendo que aquele da história não é sobre um lenço qualquer, e pode identificar suas particularidades dentre tantos outros, além de localizar a vivência subjetiva das personagens, o que modifica a leitura desde o início.

 


Adoro desafios de traduzir o que parece ser intraduzível. (Nina Rizzi, poeta e tradutora)

 

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Ilustração de 'A raposa vai de carro

Fazer a expressão "dar trela" caber em A raposa vai de carro (Companhia das Letrinhas, 2022) foi uma das grandes alegrias da tradutora Julia Bussius


Mestre em História Social, Julia Bussius é também editora e tradutora. Traduz do alemão e do inglês, é a responsável pelas versões brasileiras de umas das autoras mais referenciadas na literatura para bebês, a escritora e ilustradora alemã Susanne Strasser. Ela lembra que a tradução é uma habilidade de pesquisa e criação, combinadas. “Tento explorar bastante os recursos da nossa língua para apresentar às crianças a história que está sendo importada de outra cultura. Traduzir os nomes de personagens, expressões, lugares etc. requer um esforço diferente, não tanto de pesquisa mas mais de criação mesmo. No livro A raposa vai de carro (Companhia das Letrinhas, 2022), fiquei muito satisfeita em poder usar a expressão "não dá trela", que, por sorte, rima com "vai com ela". 

 


Gosto muito dessa liberdade maior que costumamos ter nos livros para a infância. (Julia Bussius, editora tradutora)

 

Quando o assunto é Susanne Strasser, uma curiosidade instigante – e que diz muito sobre o grau de minúcia da labuta invisível dos tradutores – é que a tradução começa na própria identificação da autoria. Isso porque esse sobrenome contém uma letra inexistente no português, e por isso estrangeira ao nosso idioma. Para resolver o imbróglio, a letra “ß” (chamada em alemão de “eszett” ou “scharfes”) foi “traduzida” no Brasil em dois “ss”, conforme o som que ela emite. Assim, Straßer  passou a ser, para os leitores brasileiros, Strasser. 


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Pesquisa e imaginação: o exercício de traduzir


Traduzir literatura é sempre um ato de “transcriação”, já dizia o poeta Haroldo de Campos (1929-2003), referência no campo de estudos da tradução. É também um ato de “tradução cultural”, nos termos da pesquisadora Leila Darín. Já traduzir literatura para as infâncias é criar, inventar, imaginar duplamente, tanto com quem escreve e ilustra, mas também com quem vai ler aquele livro. 

A tradução mescla pesquisa e imaginação para alcançar o coração da história, ali onde as coisas são ditas e não só compreendidas, mas sentidas e ampliadas. Não por acaso, tradutores frequentemente recorrem à poesia e sua economia das palavras, e também à musicalidade do texto. “Meu maior esforço é tentar encontrar o ritmo certo em português. Procuro sempre ler em voz alta para ver se funciona”, compartilha Julia Bussius, que traduz também autores como Jordan Scott, de Eu falo como um rio (Pequena Zahar, 2021) e O jardim da minha baba (Pequena Zahar, 2024), Lilli L'Arronge de Eu grande, você pequenininho (Companhia das Letrinhas, 2015), Jarvis de O menino com flores no cabelo (Pequena Zahar, 2023), e Ezra Jack Keats de Um dia de neve (Companhia das Letrinhas, 2021). Para quem se diverte descobrindo na linguagem múltiplas vidas possíveis, a aparente impossibilidade de uma tradução perfeita é talvez o que a torne mais saborosa. 

 

Traduzir livros para infância se assemelha bastante à tradução de poesia. Nina Rizzi (poeta e tradutora)

(Texto: Renata Penzani)

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