Joaquín Camp: “O que me encanta no nonsense é a liberdade”

10/02/2025

Três ladrões têm um plano: roubar um banco. E para chegar lá, eles vão cavar um túnel. Um loooooongo túnel. Mas a escavação acaba levando-os a lugares inusitados - e cada vez mais improváveis: a sala de concerto onde toca uma orquestra, um navio… Sem medo de brincar com o “absurdo”, O tesouro (Companhia das Letrinhas, 2025),  novo livro do argentino Joaquín Camp, oferece muitas camadas de leitura, com referências que talvez só os adultos sejam capazes de entender.

Ilustração de 'O tesouro', de Joaquín Camp

Improvavél, porém não impossível: o túnel que os ladrões cavaram sai no meio de um concerto em O tesouro (Companhia das Letrinhas, 2025)


Designer gráfico de formação, Joaquín é um desses tipos que desenha desde pequeno - e diz que usa até hoje a mesma marca de canetinhas. Apesar da intimidade com o universo das imagens, o caminho para chegar à ilustração e, mais tarde, a se tornar autor de seus próprios livros ilustrados, não foi linear. O grande impulso para se lançar na literatura foi ter ganhado o Concurso Internacional de Álbum Ilustrado Biblioteca Insular de Gran Canaria, com Aníbal, perro fantasma [Aníbal, cachorro-fantasma, em tradução livre, ainda sem publicação no Brasil], um livro autoral.


Desde então, Joaquín foi selecionado para a Feira de Bolonha nos anos de 2019, 2020 e 2024, além de fazer parte do catálogo Golden Pinwheel Young Illustrators Award, em 2021, que premia jovens talentos. Na Companhia das Letras, ele também publicou A gangorra (Companhia das Letrinhas, 2024), uma narrativa-brincadeira em que novos personagens vão chegando - e se juntando - em cada lado da gangorra. Seguindo a marca do autor, a narrativa mistura referências das mais diversas: de Elvis a dinossauros.


Diretamente de seu estúdio em Madri, Espanha, onde vive há sete anos, Joaquín conversou com o Blog Letrinhas. O autor falou sobre a história real que inspirou O tesouro, compartilhou detalhes de seu processo criativo e das curiosas referências que permeiam suas obras, além de refletir sobre o ofício de contar histórias. 


Confira a entrevista com Joaquín Camp

Joaquín Camp em seu estúdio, em Madri

Joaquín Camp em seu estúdio, em Madri (fonte: Instagram)

Blog Letrinhas: Você se destaca como um autor do nonsense, comparado ao autor estadunidense  Jon Agee, (de O muro no meio do livro, Pequena Zahar, 2019). Você se identifica com esse predicado?

Joaquín Camp: Precisei pensar um pouco, mas, sim. Eu adoro Jon Agee. E eu adoro o nonsense. Em O tesouro, o absurdo vai se intensificando. A situação com a orquestra poderia até ser possível, mas à medida que o livro avança e vai se tornando mais complexo, as situações também se tornam altamente improváveis, chegando até o Titanic. Qual é a chance de cavar um buraco e sair em um navio no meio do mar?


O que me encanta no nonsense é a liberdade. É poder fazer o que se tem vontade. Sempre digo aos meus alunos que cheguem ao mais ridículo que conseguirem chegar - melhor sobrar do que faltar. 

 

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Blog Letrinhas: E qual foi a ideia de partida para O tesouro?

Joaquín Camp: O título original, em espanhol, é El robo, porque me inspirei em um roubo que aconteceu de verdade na Argentina, depois da crise dos bancos e ficou famoso, virou até documentário [‘Os ladrões: a verdadeira história do roubo do século’, disponível na Netflix]. Os ladrões cavaram um túnel até a abóbada, simularam uma tomada de reféns, conduziram negociações e no final desapareceram. Ninguém sabia do túnel por onde eles escaparam. No documentário, mostra que os assaltantes chegaram a fazer aulas de atuação para performar melhor. E, no fim, quem organizou tudo foi uma pessoa com muito dinheiro, que tinha aspirações artísticas e não materiais com o roubo, como se a ideia fosse fazer uma grande performance. 


Também me inspirei no livro Shhh! Nós Temos Um Plano, de Chris Haughton. Na história, os bandidos tentam caçar um pássaro o tempo todo. Acho que O tesouro acabou saindo uma mescla dessas duas referências. No começo eu tinha umas 50 ideias anotadas, mas escolhi trabalhar com apenas três ou quatro. Eu queria fazer uma história com três personagens que tivessem personalidade própria, mas que também se parecessem como se fossem um personagem só, tivessem uma unidade. 


Blog Letrinhas: Normalmente você começa pelo texto ou pela imagem?

Joaquín Camp: Difícil dizer. É como a música: o que vem primeiro a letra ou a melodia? Não tenho uma fórmula. Tem livros que eu começo com umas cinco imagens e, a partir delas, desenvolvo uma narrativa. Com O tesouro, eu já tinha uma ideia muito clara da história e as imagens vieram por último. No princípio, a narrativa desse livro era muito mais complexa e eu precisei ir enxugando, inclusive graficamente. Mesmo sem terem nariz nem boca, os ladrões conseguem ser muito expressivos. Quando há poucos elementos, tudo é mais direto, a comunicação funciona melhor. Me agrada trabalhar com menos.

 

Ilustração de O tesouro, de Joaquín Camp

Três ladrões cavam um buraco traçando um percurso improvável em O tesouro (Companhia das Letrinhas, 2025)

 

Blog Letrinhas: No fim de O tesouro, há uma grande reunião em volta da mesa. Sua infância foi essa infância de família grande reunida no almoço?

Joaquín Camp: Não tinha pensado nisso. Eu venho de uma família muito numerosa… talvez venha daí. Ou talvez venha da sobremesa [tempo que se passa sentado à mesa depois de comer], que na Espanha é um clássico. Pode começar ao meio-dia e terminar às 5h da manhã.


Blog Letrinhas: Há muitas referências curiosas em O tesouro - de Titanic à luta livre. O que te inspira a criar nas artes e além dela?


Joaquín Camp: De tudo. Eu acho a luta livre fascinante. Sempre que vou ao México, vou assistir. Tem os bonzinhos, tem os malvados, é tudo muito teatral. Tem sempre um momento de crise em que o lutador bom está quase sendo derrotado e depois vem a revanche. Esse ritmo de narrativa me parece muito com o livro-álbum. Sem falar nos trajes, nas personalidades…. 


Estou nessa profissão porque me divirto. Por isso sempre coloco referências de coisas que eu gosto. Cenas de filmes, música... Gosto da ideia de que os livros tenham muitas camadas de leitura. 


Blog Letrinhas: E agora que você é pai, sente que esse novo papel também influencia as suas criações?

Joaquín Camp: Maurice Sendak, que para mim é o maior de todos, e muitos outros ilustradores não tiveram filhos e se conectam muito bem à infância. Ainda não sei como minha filha vai influenciar meu trabalho. Mas é verdade que agora estou obcecado por livros para bebês e vejo como é um terreno difícil. Mais do que fazer um livro ilustrado ou ficção. Tem algo de abstrato na linguagem dos livros para bebês. É preciso alcançar certa simplicidade. É algo que eu ainda estou conhecendo.

 

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Blog Letrinhas: A sua formação é em design gráfico. Quando você se descobriu autor de histórias?

Joaquín Camp: Designer gráfico é o meu título - ainda que meu diploma esteja tomando poeira. Eu trabalhei por muitos anos com projetos, mas sempre fiquei preso nas ilustrações. Ficava 90% do tempo desenhando uma fachada, por exemplo, me preocupando com os detalhes, e só depois ia olhar para o resto. Precisei ir para a terapia porque não entendia o que estava errado. E meu terapeuta foi quem me disse: “Se você gosta tanto de ilustração, por que não dá uma chance a isso?” E me pareceu uma boa ideia. 


Blog Letrinhas: Então você dedica seus livros basicamente ao seu terapeuta? 

Joaquín Camp: (risos) Faz muitos anos que não o vejo! Nem sei se sabe que eu me tornei autor… O fato é que eu fiz um portfólio e comecei a mandar mensagens para editoras e revistas que eu gostava. E nunca parei até agora. No começo foi mais difícil, mas passados muitos anos, estou tranquilo.


Depois disso, me tornar autor das minhas próprias histórias foi minha última grande transformação. Eu me inscrevi no Concurso Gran Canária [Concurso Internacional de Álbum Ilustrado Biblioteca Insular de Gran Canaria] para ter a oportunidade de publicar um livro meu e ganhei, com Aníbal, perro fantasma. Eu tinha 31 anos e foi um momento decisivo para mim, foi uma oportunidade que me impulsionou.


Blog Letrinhas: O tesouro traz uma mensagem poderosa sobre o que realmente devemos perseguir, qual é o tesouro que realmente importa. Que tesouros você achou no seu caminho pela literatura?

Joaquín Camp: Essa profissão me deu tudo. Milhões de amigos, amores, família, independentemente do reconhecimento que eu recebo pelo meu trabalho. Gosto muito de ter tantos amigos ilustradores, de todas as partes do mundo. É como uma grande família, porque sinto que temos sempre muitos assuntos em comum. Diria até que tenho amigos que se parecem muito comigo, como se fôssemos primos distantes. Não sei dizer, mas acho que tem algo que nos identifica como ilustradores, não sei se é a forma de se vestir, de falar…

Ilustração de 'O tesouro', de Joaquín Camp

Mas será o benedito que é tão difícil assim cavar um túnel até o banco? A imaginação não tem limites em O tesouro (Companhia das Letrinhas, 2025)


Blog Letrinhas: Você desenha desde pequeno. Já falou em outras entrevistas que usa a mesma marca de canetinha desde sempre e que prefere fazer tudo à mão…


Joaquín Camp: Tem gente que diz que eu sou um agente secreto da Faber Castell. Acho que uma das razões pelas quais prefiro ilustrar à mão é que as telas em geral me causam dor de cabeça. E tem algo do fazer à mão que me atrai, que é o erro. Tem algo de especial nessa primeira tentativa de desenho. A ilustração digital tem esse vai e volta com muita edição para chegar a um resultado perfeito, que não é humano. Para mim é um pouco como quando tínhamos câmeras fotográficas analógicas e usávamos bem cada foto. A gente precisava de tempo para pensar, para enquadrar, para olhar a luz de uma captura única. Agora, se pode tirar quantas fotos desejar, ficou meio automático. 


Eu não tenho nada contra o digital. Mas gosto de preservar essa primeira tentativa do desenho, tem algo nisso que me encanta.


Blog Letrinhas: E você tem todos os seus originais guardados? 

Joaquín Camp: Sim, tenho muitos originais arquivados e ainda não sei o que vou fazer com eles. Quando sou selecionado para alguma exposição, sempre mando um desenho original, não uma versão digitalizada ou uma foto. Acho que é uma experiência totalmente diferente.


Blog Letrinhas: Se nas imagens você prefere conservar essa pureza, quando a gente olha para o texto, como você conduz o processo de edição?

Joaquín Camp: A imagem e o texto para mim são processos completamente diferentes. Escrever para mim é como pescar: me custa encontrar as palavras exatas. Posso vir ao meu estúdio e desenhar todos os dias. Mas com o texto não acontece assim. Saio para dar um passeio.  Me distraio mais. É mais incontrolável. 


Blog Letrinhas: Muitos autores latinoamericanos têm ganhado espaço na literatura infantil. Você vê esse movimento? A literatura lationamericana tem uma cara?

Joaquín Camp: Acho que no início se dizia muito que a ilustração lationoamericana era mais colorida, que tinha temas próprios, mas agora, com o passar dos anos, acho que essas fronteiras estão menos nítidas. Nos Estados Unidos, há festivais específicos de ilustração latinoamericana. Mas no meu caso em particular, não sinto que haja uma linguagem argentina em um sentido estético na ilustração… Talvez com a globalização, haja mais universalidade nas histórias contadas. A cultura se mostra em uma parte, mas se estendendo para temas que são de todos.  Eu gosto muito de Heena Baek. Sempre aparecem em seus livros as mães solteiras, ela tem uma visão muito particular sobre as crianças. Acho que ela tem algo muito universal na sua forma de contar.


Blog Letrinhas: Você se identifica mais com algum dos seus personagens?

Joaquín Camp: Todos os meus personagens têm coisas de mim. Uma amiga já me disse que todos são meio perdidos como eu. Sempre são surpreendidos por algo que não viram que estava acontecendo... Mas eu diria que sou parecido com Aníbal. Tem algo que acaba transformando-o em um fantasma, mas ele lida com isso muito bem. Passa por dificuldades, mas enfrenta tudo com alegria, como qualquer um que tenha vivido e experimentado a dor.

(Texto: Naíma Saleh)

 

 

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