Contra o racismo, leitura e reflorestamento

14/05/2025

Era uma vez, em um livro, uma menina chamada Lili que pediu de aniversário uma árvore. “Vou te chamar de Jorge”. Como achou que não poderia trancá-la em casa, colocou-a em um carrinho e a levou para passear. Ela havia se apaixonado por uma floresta e ficou abismada como ela poderia crescer, uma árvore por vez. Quando as pessoas começaram a ver Lili e sua árvore pelas ruas, claro, chamou a atenção e as reações foram diversas. Teve a Dona Léa que aproveitou a sombra de Jorge para aliviar o calor; os amigos de Lili, Salim e Maurício, primeiro acharam graça, depois quiseram cada um uma árvore também; o homem que lia os jornais para os cachorros do bairro exclamou “Eu nunca tinha visto uma floresta que anda”. A notícia se espalhou. Claro. 

Ilustração de 'Minha árvore de estimação'

Lili e Jorge em uma amizade que só cresce - e transforma todo o entorno - em Minha árvore de estimação (Brinque-Book, 2025)

 

Esta história foi ficcionada pela autora canadense Marie-Louise Gay em Minha Árvore de Estimação (Brinque-Book, 2025), que acaba de ser lançado no Brasil. Em entrevista exclusiva ao Blog Letrinhas, a autora conta que “O projeto de arte ´Bosk´, que significa floresta, foi uma ideia maravilhosa de um arquiteto chamado Bruno Doedens, que pensou em plantar mil árvores em enormes caixas de madeira com rodas que voluntários empurravam pela cidade, criando oásis de sombra, beleza e relaxamento. Este projeto me inspirou a pensar do ponto de vista de uma criança. Como eu poderia escrever uma história em que uma criança, ou crianças, descobrissem a importância e a diferença de ter áreas sombreadas, mais frescas e mais bonitas em seus bairros por causa das árvores? Como eu poderia inspirá-las a olhar o mundo com admiração e curiosidade e incutir nelas o desejo de mudança? Uma criança precisava estar no coração da história.”

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Mal sabe Marie-Louise o que está acontecendo na região de Parelheiros, extremo sul da cidade de São Paulo. Uma floresta vai nascer por lá por conta de ações em bibliotecas comunitárias. Ali, onde as pessoas precisam provar que têm direito ao livro, agora eles também estão organizando um imenso mutirão para reflorestar uma região que irá abrigar a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, que está sem sede desde 2020. Quem nos contou tudo foi a educadora social Bel Santos Mayer, coordenadora do IBEAC (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário) e cogestora da Rede Literasampa. Em aula na pós-graduação O Livro Para a Infância, n´A Casa Tombada online, Bel Santos Mayer, dividiu com a turma que quando o livro Minha Árvore de Estimação chegou para o acervo de formação, minutos antes de uma reunião com os jovens que criaram a Caminhos com ela. “Qualquer atividade que a gente faça, mesmo a reunião mais administrativa, começa com uma literatura. A gente não cansa de fazer o que o Ricardo Aleixo transformou em versos: jogar palavras ao vento e vê- las voar. A gente o tempo todo espalha palavras ao vento e fica vendo elas voarem”. Quando leram se identificaram muito, o que abriu várias conversas, até mesmo uma lista de “leituras que mudam o clima”. 

Bel Santos Mayer

Bel Santos Mayer, a educadora social que está por trás do mutirão de reflorestamento que vai abrigar a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura

Criar redes de solidariedade a partir da leitura e da literatura é a expertise desta turma, que vive inspirando o Brasil para a potência dos coletivos, o senso comunitário, um valor civilizatório afro-brasileiro segundo a pesquisadora carioca Azoilda Loretto da Trindade. Mês passado, em abril, o IBEAC, as cinco bibliotecas comunitárias de Parelheiros e as 19 da Rede Literasampa deram início a um chamado geral pela campanha Contra o Racismo, Eu Planto! e Você?. Tiveram que se embrenhar em aprender também sobre reflorestamento. “O livro nos faz pensar qual é o nosso Jorge? Qual é a árvore que temos arrastado nas nossas vidas? Qual é a árvore que consegue inspirar outras pessoas? É um livro sobre inspiração, sobre teimosia”, diz Bel. Esta turma de Parelheiros carrega muitas e inspiram pessoas do Brasil todo - e até de fora - nas ações que afirmam a leitura como direito humano, como nos marcou as palavras de Antônio Cândido, um dos mais importantes teóricos da área do livro e da leitura no Brasil. “A nossa biblioteca ficava em um cemitério, ficou por lá 10 anos, Imagine o que é levar um grupo de 27 adolescentes, quase todos pretos, para ocupar um cemitério e falar de literatura”. Quando veio o isolamento social por conta da pandemia da COVID-19, “o cemitério percebeu que daria mais lucro vender covas do que ter meninos lendo”. O grupo não pagava aluguel: era esquema de comodato, cuidando da casinha do coveiro, onde a biblioteca existia. Precisavam ir para algum lugar e levar o acervo de livros. 

O caminho foi confeccionar sacolas - as costureiras da comunidade fizeram 500 - e distribuir o acervo entre os moradores e para parceiros do grupo, que foram os guardiões deste acervo. Neste mesmo período, aconteceu algo fenomenal: ganharam um terreno na região. Parelheiros é Área de Proteção Ambiental e uma empresa havia plantado pinus, anos atrás, e no momento de retirá-los, tinham que colocar outra árvore no lugar, conforme diz a lei. “A empresa então nos conheceu e deu o terreno para nós e uma cooperativa de orgânicos do território (a Cooperapas - Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo) e assumimos o compromisso de compensação ambiental de plantar cerca de 10 mil árvores.” Em aula em um outro curso da mesma A Casa Tombada, uma pessoa chamou a atenção para a possibilidade de plantar 10.639 árvores, mesmo número da lei contra o racismo na educação, a Lei 10.639, de 2003. “A gente vai dar uma floresta para a comunidade que já foi considerada o pior lugar para nascer e viver na cidade de São Paulo, com os piores índices de educação, maiores índices de gravidez na adolescência, menor esperança de vida. Não por acaso, é também a terceira população no percentual de negros em São Paulo”. 

Bolsas para levar os livros

As bolsas confeccionadas para levar os livros

Por isso que a obra de Marie-Louise se encaixou tão bem. A partir de junho até o mês de agosto, o grupo vai fazer o plantio neste terreno que já tem algumas árvores nativas da Mata Atlântica. A campanha está envolvendo pessoas de diversas áreas, com possibilidade de participação de diferentes formas, nas várias etapas da empreitada. Para saber como ajudar, clique aqui neste link, onde tem detalhes e um formulário para o voluntariado.  

O Ibeac tem 44 anos, nasce bem no período de redemocratização no país, focado e orientado pela declaração universal dos direitos humanos, artigos elaborados pela ONU em 1948. Para eles, esses artigos, direitos, deveriam ser uma cartilha. “Ah, mas isso é sonho, as pessoas dizem. Mas se não formos nos mover pelo sonho, vamos nos mover pelo que, pela barbárie?”. Segundo o preâmbulo do documento, “como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.” Em 2024, o Ibeac venceu o Prêmio Jabuti, na categoria Fomento à Leitura. No mesmo dia em que a pesquisa Retratos de Leitura informava que o Brasil havia perdido 6,7 milhões de leitores. “Seguimos acreditando no poder das histórias para abrir caminhos, ampliar horizontes e fortalecer comunidades”, diz um comunicado oficial do grupo no site da instituição.

No final do livro Minha Árvore de Estimação, a autora escreve com uma dupla belíssima com imagens de pessoas diversas e suas plantas alterando completamente a paisagem, antes cinza e concreta demais: “A notícia se espalhou. Todo dia mais e mais pessoas se juntavam à floresta andante.” E continua: “Logo as pessoas começaram a trazer cadeiras para se sentar embaixo das árvores. As famílias estendiam toalhas e faziam piqueniques na sombra. Bebês engatinhavam, cachorros dormiam e músicos tocavam canções animadas na pequena floresta. Passarinhos cantavam, borboletas voavam, lagartas subiam lentamente nas árvores. O ar estava fresco e perfumado de folhas verdes. A rua da cidade havia se transformado, uma árvore por vez.” 

Isso que é sonho bom! 


(texto: Cristiane Rogerio)

 

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