A raiva é um sentimento natural, presente já nos bebês, quando descobrem que algo bom pode sumir. Tem cara feia, agitação e gritos. Os batimentos cardíacos e a tensão muscular aumentam e há ativação do sistema nervoso. Apesar de caracterizar desenvolvimento e defesa emocional, a raiva em excesso pode esconder transtornos e depressão. Nos momentos de fúria, técnicas e livros ajudam a acalmar pais e filhos.

O monstro vermelhor mostra a raiva de uma forma mais divertida que assutadora em 'Respire fundo, grande monstro vermelho' (Brinque-Bookk, 2025)
É assim em Respire fundo, grande monstro vermelho (Brinque-Book, 2025), obra de Ed Emberley, traduzida por Elisa Zanetti e lançada pela Brinque-Book. Nela, o autor, que também assina o clássico da Vai Embora, Grande Monstro Verde (Brinque-Book, 2009), traz o sentimento de forma lúdica, colorida e divertida. A obra mostra como o monstro vermelho se forma, num ataque de fúria, com olhos arregalados e fogo nas ventas, para logo propor maneiras de deixar a raiva e dar lugar a um tranquilo e bonito personagem, focando na respiração e nos pequenos detalhes.
“É um livro que pode ajudar a criança a nomear a emoção da raiva/frustração, ao ver o monstro vermelho como símbolo de algo que está mais intenso do que o normal. Uma história que também serve como ponte para o diálogo, no qual o adulto pode questionar: ‘Quando eu fico como o monstro vermelho?’, ‘Como posso usar a respiração?’ ou ‘O que me ajuda a acalmar?’”, diz a psicóloga Carolina Correia Abati, mestre em saúde da criança e pesquisadora do NinaLab (Laboratório de Neurodesenvolvimento e suas Intervenções informadas pela Neurociência) do Instituto de Psicologia da USP, em São Paulo.
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O problema não é sentir raiva

O monstro de 'Respire fundo, grande monstro vermelho' (Brinque-Book, 2025) tem grande olhos malvados... mas não precisa se assustar!
As técnicas de autorregulação são indicadas por profissionais para amenizar explosões de raiva, que não são “falta de educação”, mas falta de aprender estratégias para regular o sentimento, como explica a doutora em psicologia, Aline Henrique Reis, professora da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) e vice-presidente da FBTC (Federação Brasileira de Terapias Cognitivas). “Raiva é uma emoção básica que todos sentem. O problema é como a expressamos. Alguns podem não ter tido um bom modelo que ensinasse a regular a intensidade da raiva”, diz Aline, lembrando que pais explosivos usam punição física e verbal com frequência, o que só intensifica tudo.
Expressar esta emoção é um aprendizado, moldado pelas experiências sociais, culturais e familiares. “Cabe ao adulto ajudar a criança a reconhecer, nomear e regular essa emoção, ensinando que sentir raiva é legítimo, e que existem formas seguras e respeitosas de expressá-la”, afirma Carolina.
Ela enfatiza que a raiva na infância não é apenas descontrole ou birra, mas uma forma de defesa emocional, usada para comunicar frustração, medo, tristeza e necessidade de controle. Os rompantes também escondem sentimentos de impotência, cansaço, insegurança ou desejo de conexão. “Quando a raiva é acolhida e compreendida, e não punida, ela se transforma em força de posicionamento, senso de justiça e autoconfiança. Quando reprimida ou invalidada, pode se manifestar de forma disfuncional, como agressividade, retraimento ou somatização”, alerta.
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Os gatilhos
Mesmo que os pais não sejam a causa para os ataques de raiva dos filhos, algumas ações podem intensificá-las. “Quando o adulto diz ‘não’ de forma brusca, sem explicação ou alternativa, a criança tende a vivenciar esse limite como uma perda de controle ou até rejeição e reage de forma intensa e imediata”, aponta Carolina. “Deve haver limites, mas apresentados com empatia, clareza e previsibilidade, para ela associar regras e ‘nãos’ a segurança e cuidado, e não à punição.”
Outro gatilho, ressalta ela, é a inconsistência nas reações parentais. Quando um mesmo comportamento é ora permitido e ora punido, há confusão e insegurança, aumentando a probabilidade de respostas de raiva e oposição. “O comportamento se mantém se a criança consegue o que quer ao reagir com raiva, pois entende que é uma forma eficaz de conseguir atenção ou aquilo que deseja.”
O excesso de demandas ou estímulos também pode desencadear raiva, especialmente em bebês e crianças pequenas. Ambientes muito acelerados, barulhentos ou com transições bruscas entre atividades provocam sobrecarga sensorial e emocional. “Nesses momentos, o sistema nervoso infantil entra em estado de defesa, o corpo recebe uma intensa descarga de adrenalina e cortisol, levando a gritos, choro intenso ou recusa”, destaca Carolina. Uma leitura pode ser um convite importante, pois desacelera todos os envolvidos. “A literatura infantil também é uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento emocional, pois atua de forma simbólica, afetiva e educativa, ao acessar o mundo interno da criança”, percebe Carolina.
É importante, ainda, diferenciar raiva de birra. A raiva é o que a criança sente, e a birra é como ela expressa ou tenta resolver o que sente. Em geral, a raiva vem primeiro e a birra é uma tentativa de lidar com ela, explica Carolina. “A raiva cumpre a função de comunicar desconforto e sinalizar a necessidade de apoio e limites seguros. A birra é um comportamento, uma forma aprendida de reagir às emoções. Enquanto a raiva é uma emoção involuntária e natural, a birra é um comportamento operante, aprendido e moldado pelas respostas do ambiente.”
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Como lidar
Para encarar as crises de raiva na infância, as profissionais indicam manter a postura calma e firme. Acolha a emoção do seu filho, ajude-o a se reorganizar, sem punição ou críticas, mas não ceda a comportamentos inadequados. Valide o sentimento dele, porém, mantenha o limite. Use frases curtas como: ‘Eu estou aqui’, ‘Você está bravo, mas vai passar’, ‘Respira comigo’. Se houver risco, segure-o com cuidado, sem força ou agressividade. Tente a técnica da respiração ou a da distração. Convide a criança a uma disputa de corrida ou corda, mostre algo no ambiente ou sugira brincar com animais.
Já os bebês não possuem capacidade de entender ou se autorregular. Então seu choro ou grito não são manipulação, mas sim uma forma de comunicar desconforto, fome, cansaço, dor ou frustração. “A melhor maneira de agir é acolher fisicamente: pegar no colo, embalar, falar com voz suave e reduzir estímulos ao redor, como barulho e luz. O bebê aprende a se acalmar quando é acalmado, ou seja, a corregulação que recebe do adulto será a base de sua autorregulação no futuro”, observa Carolina.
Lembre-se ainda do que nunca fazer durante crises de raiva. “Gritar, ameaçar, humilhar ou comparar (‘Você é feio quando grita’, ‘Ninguém gosta de criança assim’) apenas reforçam o medo e a vergonha, e não ensinam autocontrole. Ignorar completamente a criança também é prejudicial, pois ela se sente abandonada justamente no momento em que mais precisa de segurança emocional”, fala a psicóloga.
Também não é uma boa estratégia incentivar algo que estimule a raiva, como socar travesseiro ou bater num objeto. “Nunca grite, puna ou compare a criança, com frases como: ‘Que feio, papai do céu não gosta de criança que faz isso’, ‘Olha sua irmã, está se comportando direitinho’ ou ‘Tá todo mundo olhando pra você’. Isso apenas aumenta a raiva e estimula a vergonha”, diz Aline.
Depois de a crise passar, é o momento de nomear o que aconteceu, identificar o que provocou e ensinar formas adequadas de expressão, validando o esforço da criança em se acalmar (‘Você conseguiu respirar e se acalmar, isso é muito bom’). “Esse é o momento de ensinar, não de punir. Falar sobre o que o corpo sente quando a raiva vem, ou pensar juntos em alternativas, ajuda a desenvolver consciência emocional e autocontrole”, reforça Carolina.
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Raiva na escola
No convívio escolar, as crises de raiva podem surgir com um desenho não concluído, um brinquedo que desmoronou ou uma despedida dos amigos. Até mesmo dividir a atenção da professora gera irritação.
“A escola precisa estar preparada para acolher e trabalhar essas emoções de forma natural, e isso começa muito antes da crise. É preciso oferecer um espaço estável, com regras claras, que transmita confiança e segurança, com acolhimento e escuta”, avalia a psicóloga Stephanie Frabetti, orientadora educacional do Colégio Gracinha, em São Paulo.
Nos momentos de crise do aluno, diz ela, o educador deve manter a calma, abaixar-se, olhar nos olhos da criança e mostrar disponibilidade para ouvir. Essa postura transmite segurança e respeito. É preciso falar com voz baixa e validar a emoção da criança com frases como: ‘Estou percebendo que você está muito bravo’; o que fará ela se sentir compreendida.
Também vale oferecer um espaço calmo, dentro ou fora da sala. Onde for, os livros são aliados poderosos no trabalho socioemocional. “Histórias que abordam emoções ajudam a desenvolver autoconhecimento, permitindo que a criança reconheça e valide seus próprios sentimentos e os dos colegas”, fala Stephanie.
Para crianças maiores, caminhar pela escola ou beber água fora da sala pode ajudar a reduzir a tensão. Técnicas de respiração consciente, alongamentos, exercícios de percepção corporal e até práticas simples de yoga também podem ser utilizadas, enfatiza a orientadora.
“Após a crise, é fundamental conversar sobre o que aconteceu”, reforça ela, sugerindo rodas de conversa. “Vimos crianças dizendo umas às outras: ‘Já passei por isso antes’ e ‘Estou aqui do seu lado’. Essa troca é fundamental para reduzir a angústia e fortalecer vínculos, pois elas percebem que não estão sozinhas em seus sentimentos.”
(texto Mauren Luc)