Jabuti 2016: "Jeito de matar lagartas"

21/11/2016

Foto: Márcio Garcez

Antonio Carlos Viana se consagrou como um dos principais contistas do Brasil. Nascido em Aracaju, Sergipe, foi mestre em teoria literária pela PUC-RS e doutor em literatura comparada pela Universidade de Nice, na França. Também tradutor, Viana recebeu o prêmio APCA 2009 de melhor livro de contos por Cine privê, publicado pela Companhia das Letras. No dia 14 de outubro deste ano, a literatura brasileira recebeu com tristeza a notícia de seu falecimento, aos 72 anos de idade. 

Jeito de matar lagartas foi o último livro publicado pelo autor, marcando seus quarenta anos de carreira. No Prêmio Jabuti 2016, foi homenageado com o prêmio In memoriam na categoria Contos e Crônicas. Na época do lançamento do livro, em entrevista para o G1, o autor comentou que “achava que tinha desistido da vida de escritor por causa das doenças que tomaram conta de mim. Comecei a sentir fortes dores nas costas e senti que o bicho ia pegar. Antes que a situação piorasse, eu me concentrei na finalização dos contos e mandei para a editora...". Em texto publicado neste fim de semana na Folha de S. Paulo, Paulo Henriques Britto, ao relembrar a amizade com o autor, escreve sobre este momento: "Resolvi incentivá-lo a retomar umas histórias que havia abandonado, e com minha insistência ele acabou tomando gosto e terminando um número de textos suficiente para um novo livro. Um dos contos, que daria título ao volume – Jeito de matar lagartas –, era um dos melhores que ele já havia escrito". 

Na mesma entrevista para o G1, Viana também falou sobre os temas de seus textos: "A miséria humana me interessa em todas as suas manifestações, ela é muito rica para ser explorada pelas artes, que hoje parece não lhe dar muita atenção. Fica todo mundo querendo ser experimental, esquecendo que a arte nasce do humano. Claro que não estou negando o experimentalismo, mas o experimental pelo experimental termina cansando."

Neste último livro, Antonio Carlos Viana narrou histórias do cotidiano aparentemente banais, como uma brincadeira de criança, a venda de um imóvel ou o reencontro de um jovem estudante com a antiga professora, tocando em questões fundamentais como o envelhecimento, o sexo (ou a ausência dele) e a solidão. Na orelha escrita por Paulo Henriques Britto, o escritor e tradutor comenta que “a escrita de Antonio Carlos Viana [...] caracteriza-se desde o início pela concisão, uma recusa a qualquer forma de sentimentalismo, sem que isso implique indiferença ou cinismo. O distanciamento do narrador, mesmo quando (como frequentemente ocorre) a história é contada na primeira pessoa, visa acima de tudo garantir a precisão vocabular, a limpidez da sintaxe, e tem o efeito de acentuar a verossimilhança do narrado, até quando a ficcionalidade é evidente."

Para conhecer mais, leia a seguir um trecho do conto "Roteiro da solidão", segundo conto da coletânea Jeito de matar lagartas.

* * *

1.
Um dia você acorda sozinho, sem ninguém no mundo, o telefone não toca e o silêncio toma conta de tudo. Foi num dia assim que dona Ineide começou a se desesperar. Às vezes cantava só para sentir que ainda tinha voz. O marido morrera, os filhos se foram e, de repente, ei-la sozinha
naquele casarão. Depois de muito pensar, resolveu colocá-lo à venda, não para ir morar num apartamento, mas apenas para ter alguém batendo à sua porta, convidar para entrar, tomar um café e entabular negociações em que ela não estaria nem um pouco interessada.

2.
Os interessados começam a aparecer. Dona Ineide fica muito feliz, toma novos ares, come melhor. Até um pouco de maquiagem ela passa a usar, coisa simples, um pó compacto, um batom leve. Está velha, mas ainda tem alguma vaidade. Não tem medo de assaltos, porque também não
tem nada de valor em casa. As joias, deu-as todas para as filhas e noras. Desde então, a manhã de dona Ineide tem se ido numa rapidez espantosa. A tarde é sempre mais preguiçosa, mais demorada. Liga a TV e já nem presta mais atenção nos comentários feitos por aquela apresentadora de voz enjoada e fraquinha. Os programas são sempre ruins, ela sabe disso, mas o som da TV é sempre uma boa companhia. Têm aparecido mais homens que mulheres interessados em comprar seu casarão. Ela dá um preço irreal, alguns tentam entabular negociação, outros desistem logo. Dona Ineide abre o sorriso ainda perfeito para alguém de sua idade e diz: “Que pena, pense bem, o local é ótimo, precisa só de uma boa pintura”. Claro que é mentira. O casarão está muito escalavrado. Os janelões da frente precisam ser trocados, o portão está comido pela ferrugem, o reboco do muro precisa ser refeito, os pés de parede necessitam de um bom cimento. Desde que começou a receber visitas, dona Ineide prepara a comida durante a noite para não perder nenhum visitante. Pior coisa não há do que suspender a conversa para ir ver uma panela no fogo, a conversa perde força e não volta a engrenar.

3.
Quem coloca a casa à venda está sujeito a tudo. Mas não pensem que foi ruim o que aconteceu com dona Ineide. Um dia um tal de Luís Rabelo marcou encontro. Estava muito interessado em comprar a casa para abrir um cursinho. Na mesma hora ela teve um clique. Seria o mesmo
Luís Rabelo de sua adolescência, sua paixão de colegial? Platônica, é bom frisar. Uma paixão só dela, que ele nunca soube. Era o rapaz mais bonito de sua época. Morava numa casa de andar no bairro dos ricos, por onde ela passava todos os dias só para vê-lo. Nem sempre o via, porque ele passava o tempo todo estudando. Além de bonito, era o melhor aluno do colégio. Nunca se atrevera a lhe dirigir a palavra, tinha até medo, porque a fama de gênio que o acompanhava a assustava mais que a riqueza do pai, fazendeiro dos antigos.

4.
Luís Rabelo. Era o próprio. E dona Ineide só faltou ter uma queda de pressão diante daquele homem de cabelo completamente embranquecido, embora o rosto fosse o mesmo sob as rugas. O olhar continuava também o mesmo por trás das lentes limpíssimas dos óculos, mas parecia ter algo mais puro, sem os ares de sabedoria do jovem que ela conheceu. Nem acreditava que agora ele finalmente olhava para ela. Ela sabia que ele nunca a tinha olhado. Ela sabia tudo da vida dele. Acompanhou o casamento na catedral com a filha de um político poderoso, a cauda imensa do vestido tomando todo o corredor, o coro dos meninos órfãos dando o tom da festa. Dona Ineide tomou também seu caminho, mas de mulher pobre. Casou-se com um caminhoneiro, coisa de que jamais gostou. O marido vivia pelas estradas pegando qualquer mulher e transmitira-lhe uma doença da qual ela nunca mais se livraria. Isso não tinha perdão. Conformou-se com a vida que teria ao lado de seu Pedrito, enquanto a outra, a bela diva das crônicas sociais, aparecia em navios pelo mundo afora, diante da Torre Eiffel, do Taj Mahal, da Cidade Proibida. Os jornais viviam publicando a foto da tal, e aquilo dava uma inveja desmedida em dona Ineide, a ponto de ela pensar em se separar de seu Pedrito e ir tentar ser a outra de seu Rabelo. Sua educação, porém, não a deixava fazer isso. Sorte que seu Pedrito era homem de tino e, com poucos anos de trabalho, já era dono de uma frota de caminhões que cruzavam o país levando e trazendo mercadorias de todo tipo.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog