Palimpsestos de Elvira

09/05/2017

Acho Elvira Vigna uma gigante. Demorei a pegar Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, lançado no ano passado, mas agora devo me somar a todos que disseram que esse era seu melhor romance. Ontem estava assistindo a uma entrevista que a autora concedeu às meninas do canal Bondelê. “Eu tenho um processo de simplificação e soltura”, diz Vigna, “e esse é o único processo, porque na verdade o assunto é sempre o mesmo, os livros se repetem de uma maneira vexaminosa”.

Eu ri (como rio, aliás, muito, nos livros dela). De qualquer maneira, me parece ser o caso mais de um projeto estético claro do que de uma repetição enfadonha. Quando abrimos um livro da Elvira – a não ser que seja a primeira vez, que então deve vir com uma surpresa acarretada pelo não convencional –, sabemos mais ou menos o que vamos encontrar: narradores mordazes, com um olhar muito crítico em relação à paisagem e às pessoas; cidades hostis que, dificilmente, confortam; personagens que vivem vidas medíocres, com alto grau de insatisfação; uma flagrante e irremediável incomunicabilidade entre pessoas, com pequenos lampejos de compaixão.

Em termos estilísticos, sua prosa também é perfeitamente reconhecível. Na verdade, se a gente tirasse uma foto de uma página qualquer e então visse aqueles parágrafos abrindo o tempo inteiro, saberíamos de cara que se trata de Elvira Vigna. Mas é claro que é mais do que isso. Parte do humor ácido que percorre seus livros está mais na forma de contar do que propriamente no conteúdo, como se a organização das palavras e o ritmo pudessem gerar um efeito de “deboche implícito”. Um exemplo:

“Você fuma?”

“Não.”

Mentira. Fumo. Mas estou largando, junto com mais coisa. Fumo/fumava cigarrilhas holandesas, por causa do gosto de baunilha e de chocolate das cigarrilhas. E por causa, principalmente, da composição da personagem. As botas, a calça de napa preta, a camisa masculina sem sutiã, o cabelo curto. E a cigarrilha que pego como quem junta farelo de pão, os dedos juntos. Como quem pega o que sobrou.

E a cara de quem está com raiva do mundo.

A raiva vai sumindo. Vai se transformando em tristeza. A cigarrilha também vai sumindo. Nem gostava tanto, para falar a verdade.

Também é bastante peculiar a maneira como os nós da trama vão sendo desatados, em particular nesse seu último romance. Como sempre, a narrativa é fragmentada, e há algo de obsessivo e neurótico no jeito da narradora contar a história, uma hiperanálise dos acontecimentos, a exposição de "teorias" até para os fatos mais corriqueiros, uma tentativa, enfim, de dar uma ordem e oferecer uma explicação sobretudo para o fato de João gostar de putas, para o fato de Lola continuar casada com o João e para o fato da própria narradora se ver fascinada por essa história que não lhe diz respeito. Mas há, ainda assim, espaço para dúvida. Muita.

Por isso, talvez, a fragmentação das narrativas de Elvira Vigna nunca parece um mero truque de montagem. Será também porque, no processo de escrita, as coisas lhe venham na cabeça dessa forma? Na entrevista que já mencionei, Elvira declara que tudo que está nos seus livros é real. São histórias que aconteceram com ela ou com pessoas próximas, que se desenrolam em lugares que lhe são ou foram familiares, tudo já ali – segundo ela –, menos o narrador. Ao longo da vida, Vigna teve a sorte de conhecer os tipos mais variados de pessoas, sem saber que aquelas experiências iriam futuramente alimentar a sua literatura.

Como autora, não me identifico com o compromisso de Elvira com a realidade e a experiência; a ideia do “tudo já ali” é diametralmente oposta ao que faço; meu movimento, me parece, é mais de ir em busca do livro do que de tirá-lo de dentro de mim. Talvez porque a vida, naturalmente, não tenha me apresentado a diversidade necessária, e então preciso ir buscá-la, correr atrás. No entanto, compartilho com Elvira as dúvidas e as hesitações inevitáveis da existência. Talvez. Me parece. Não sei mesmo.

* * * * *

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 

Carol Bensimon

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