Parassocial: a conexão que sentimos com personagens que amamos
Sabe aquele personagem que pode existir só na imaginação, mas que desperta em você uma conexão inexplicável? Como se vocês se conhecessem? Fizemos uma lista de personagens asssim:
Por Ana Maria Machado
Olho o retrato e não me limito a ver. Também ouço música ao longe. Cantigas e desafios.
A menina encara a câmera fotográfica com olhar firme. Não se sabe se desconfiado ou desafiador. Sentada, ostenta ao lado a boneca que, de pé, ultrapassa os ombros da pequena dona e companheira. As duas são bochechudas. Os cachinhos de ambas se repetem e conversam entre si. Em surdina, numa pausa entre a algazarra das brincadeiras.

Eu tinha em torno de três anos quando me tiraram essa foto, orgulhosamente em companhia da boneca com a qual eu sonhara tanto – a Isabel. Nome de princesa, claro. Homenagem à Princesa Isabel cujo bercinho dourado meus pais haviam me mostrado no museu em Petrópolis, um passeio que dava para fazer a pé ou de charrete, a partir da casa de meus avós paternos. Num tempo em que as menções a princesas que chegavam às crianças tinham mais a ver com contos de fadas ouvidos das avós ou episódios da História do Brasil do que com a multiplicação de games e filmes.
LEIA MAIS: Como introduzir as crianças no universo dos clássicos?
De qualquer modo, as memórias são muito vagas e nem mesmo lembro quem me deu a boneca, se foram meus pais ou padrinhos. Lembro que adorei o presente, fascinada com seu vestido de festa e seu inigualável chapéu cor-de-rosa com florzinhas. Fiquei inseparável dela enquanto durou. Mas não durou muito. Era de louça e acabou se espatifando. Como as cantigas de roda garantiam ser um destino sempre à espreita, prontas a dar exemplos dos tantos perigos desta vida. De um anel que era vidro e se quebrou. Ou da Teresinha de Jesus, que deu uma queda e foi ao chão.
Eu era muito pequena ainda. Recordo muito pouca coisa desse tempo. Não são fatos específicos. Tenho apenas vagas sensações que me voltam, quando vejo a foto.
LEIA MAIS: Ana Maria Machado e María Teresa Andruetto: Literatura não é manual de boas intenções
Devia ser inverno, porque estou com detestáveis “roupas que espetavam”. Meias de lã e um vestido de tricô, que os adultos achavam ser exigido pela temperatura amena de fim de tarde no alto do morro. Reconheço o muro do prédio em que nasci e onde ainda morávamos, no bairro carioca de Santa Teresa. Um muro que permitia olhar as coisas de cima e onde eu gostava de sentar depois de tomar banho no fim da tarde. E às vezes ia passear no bonde que passava em frente. Minha mãe me entregava aos cuidados do motorneiro, às vezes com outras crianças do prédio, e subíamos até o fim da linha, na estação do Silvestre, em plena mata ao pé do Corcovado. Dava para ver passarinhos e micos, muitos. Depois, quando voltávamos, o motorneiro tocava a sineta desde longe de nossa casa, uma festa musical.
Avisada pelo som, mamãe saía de casa com meu irmão menor (que a essa altura também já tomara banho) e ia nos esperar no ponto de bonde. Sem nenhuma sensação de insegurança. Cenas impensáveis hoje, num bairro deteriorado, cenário de assaltos e tiroteios, invadido por bandidos, palco de confronto entre traficantes que ocupam as diversas comunidades instaladas em suas encostas, não mais recobertas de tumberginhas amarelas de miolo escuro e capuchinhas vermelhas, flores entre as quais pastavam as cabras do Simão, apanhador de papel que morava ao lado e com o qual dava para conversar desde a varanda do prédio.
Meus cachinhos competiam com os da boneca. Lindinhos, mas de um tempo em que não havia xampu nem amaciante de cabelos. Eu sabia, na pele, que a “moreninha de cabeça cacheada”, celebrada em outra cantiga por passar “lá em cima daquele morro” onde “passa boi, passa boiada”, só ficava assim com o cabelo bonito às custas de uma dolorosa sessão em que os cachos eram desembaraçados com o pente que se prendia nos nós e puxava. Eu às vezes chorava nessa hora.
LEIA MAIS: Um encontro marcado com mestres da literatura infantil
Em matéria de dores, nenhuma competia com os joelhos e palmas da mão sempre escalavrados. A foto ostenta, bem nítidas, as feridas dos joelhos, com suas casquinhas. A memória recorda como o iodo ardia para desinfetar e fazer curativo. Eu era muito levada. Subia em árvore, escalava o muro, corria na calçada de cimento. E caía. Mas como não era de louça nem de vidro, não quebrei.
Estou caindo e levantando até hoje, constato ao olhar a foto dessa menina que, de alguma forma, continua aqui dentro, de um jeito que só eu vejo e sinto, a me enternecer e sussurrar algumas coisas. Em surdina, sem qualquer algazarra. Com olhar desconfiado ou desafiador.
***
Ana Maria Machado nasceu no Rio de Janeiro, em 1941. É escritora e tradutora. Escreveu mais de cem livros para crianças, publicados em dezessete países, e também obras para adultos. No ano 2000, Ana Maria recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel de literatura infantojuvenil, e em 2001 ganhou nossa maior distinção literária, o Prêmio Machado de Assis, da ABL. Em agosto de 2003, tomou posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), onde ocupa a cadeira número I. Seu site oficial é www.anamariamachado.com.
Leia mais:
+ O ato de contar histórias como garantia de vida
+ Casa de escritor é uma verdadeira biblioteca
+ Hora da Recreio, a revista que mudou a literatura infantil brasileira
Sabe aquele personagem que pode existir só na imaginação, mas que desperta em você uma conexão inexplicável? Como se vocês se conhecessem? Fizemos uma lista de personagens asssim:
Apresentamos 10 razões que explicam por que as livrarias são lugares tão incríveis e que vão te convencer a participar da nossa campanha de fim de ano “Todas as histórias cabem aqui”
Novo livro do premiadíssimo artista paulistano Alexandre Rampazo nos relembra que a infância é lugar da curiosidade – e isso afeta também os adultos