A formação de um escritor

14/08/2017

Foto: Thomas Wågström

Transformar a própria vida em ficção lançou Karl Ove Knausgård a um novo patamar da literatura. Ele não foi, claro, o primeiro a fazer isso, mas o que mais chama a atenção em sua prosa é justamente a maneira como o escritor norueguês narra as coisas mais mundanas de sua vida. 

Knausgård começou a série Minha Luta - composta de seis volumes - com A morte do pai, uma investigação da própria juventude e uma reconstrução da trajetória de seu pai, figura distante e insondável que entra em declínio e leva o núcleo familiar à ruína. No segundo livro, Um outro amor, o autor transformou a rotina doméstica em um romance honesto e profundo sobre o amor de um homem por sua mulher e seus filhos. Em A ilha da infância, ele ultrapassou os limites da memória para narrar seus primeiros anos de vida, voltando para a conturbada figura do pai. Já em Uma temporada no escuro, o leitor pode acompanhar o início da vida adulta de Knausgård, suas tentativas de perder a virgindade e o início de sua ambição de se tornar escritor.

É justamente deste ponto que parte o quinto livro da série, A descoberta da escrita, recém-lançado no Brasil. Aqui, Knausgård percorre seus anos de estudante de escrita criativa na cidade universitária de Bergen e, com a honestidade que lhe é característica, explicita as dificuldades e frustrações que permeiam o caminho de todo aspirante a romancista. Às intempéries da formação de escritor somam-se os conflitos e inseguranças da juventude, permeados por episódios de bebedeira, brigas, insucessos românticos e toda sorte de golpes ao narcisismo pueril daquele que viria a se tornar o maior escritor vivo da Noruega. 

Aqueles que acreditam que o talento literário se resume a uma vocação inata não podem deixar de ler A descoberta da escrita. A seguir, leia um trecho do romance. 

* * *

Depois que me deitei, às duas horas, ouvi passos em frente à porta de entrada, que então foi destrancada e batida com força. Pelo som dos passos que atravessaram o corredor, eu sabia que era Morten. Ouvi música no andar de baixo, num volume até então inédito, aquilo durou uns cinco minutos e de repente tudo ficou em silêncio.

Quando acordei no dia seguinte, eu ainda não tinha decidido o que fazer, então peguei o poema para levá-lo comigo e decidir na hora. Não foi
difícil. Assim que entrei na sala de aula e vi meus colegas sentados, relaxados com uma caneca de café ou de chá, e as bolsas, mochilas ou sacolas acomodadas junto aos pés da mesa, ou então apoiadas na parede logo atrás, junto com guarda-chuvas molhados, que às vezes também ficavam abertos na sala da copiadora ou no espaço entre a mesa e a copa, para que estivessem secos na saída, assim que vi aquela cena e pressenti o clima amistoso daquilo tudo, compreendi que eu não poderia ler o meu poema. Era um poema de ódio, que pertencia ao meu estúdio, onde eu estava sozinho, e não àquela sala de aula, onde eu estava na companhia de outras pessoas. Claro que eu poderia romper a barreira que separava esses dois espaços, mas era uma barreira muito forte, que dizia que aquelas duas coisas não deviam se misturar.

Dizer que eu não tinha escrito poema nenhum seria desabonador. Todos entenderiam que eu não tinha escrito nada em função dos comentários de Fosse no dia anterior, o que era o mesmo que dizer que eu não tinha colhões, não tinha resistência nenhuma, era apenas uma pessoa frágil e infantil, dependente e fraca.

Para corrigir essa impressão, tentei parecer atento, interessado e cheio de entusiasmo durante os comentários sobre os poemas dos meus colegas. Estava dando certo, eu já tinha começado a entender a maneira como os poemas eram comentados, já sabia ao que prestar atenção, o que era considerado bom ou ruim, e também me articulava de maneira organizada e compreensível, o que nem todos conseguiam fazer. Para um grupo de pessoas que deveria ter pleno domínio da língua, havia muita incerteza e muita hesitação, olhares tímidos e argumentos que eram retirados assim que começavam a circular ao redor da mesa, às vezes quase insuportavelmente fracos e insignificantes, e quando às vezes eu tomava a palavra, era simplesmente para trazer um pouco de ordem e clareza à discussão.

A caminho de casa passei no Mekka e gastei mais de setecentas coroas em comida, saí com meia dúzia de sacolas cheias nas mãos, e a perspectiva de carregar tudo aquilo até em casa era tão desanimadora que em vez disso ataquei um táxi, que se aproximou da calçada e parou, eu coloquei tudo no porta-malas e me sentei no banco de trás, para então ser levado pelas ruas molhadas como um membro da família real, por assim dizer erguido acima da labuta diária que se desenrolava nas ruas ao meu redor, e mesmo que fosse caro, e eu assim estivesse gastando todo o dinheiro que havia economizado ao comprar no Mekka, valeu a pena. 

Em casa guardei tudo no lugar, dei uma passada no banheiro com o meu livro de fotografia, jantei e tentei escrever um pouco, mas dessa vez nada de poemas, eu não queria mais saber de poemas, eu era um escritor de prosa, e quando notei que as frases continuavam vindo com a facilidade habitual, que bastava escrever, me senti aliviado, porque eu havia temido que os comentários de Fosse a respeito do meu poema catastrófico poderiam afetar minha confiança também na prosa, mas não foi o caso, tudo fluía como antes, e escrevi quatro páginas antes de me dar por satisfeito e sair para telefonar para Ingvild.

Dessa vez eu não estava tão nervoso, em primeiro lugar ela havia pedido que eu ligasse, em segundo lugar eu queria apenas convidá-la para a festa, e se ela recusasse o convite, não seria necessariamente uma recusa a mim.

Sob a pequena cúpula de plástico transparente eu fiquei com o fone apertado contra a orelha, esperando que a ligação fosse atendida do outro
lado da linha. Os pingos de chuva escorriam em longos rastros por cima do plástico e se amontoavam na parte de baixo em gotas maiores, que de tempos em tempos soltavam-se e caíam no asfalto com um discreto plop. Sob a luz dos postes de iluminação pública vi que o céu estava listrado de chuva.

— Alô?

— Alô? Eu gostaria de falar com a Ingvild…

— Oi! Sou eu.

— Oi. Como você está?

— Bem, acho. Bem mesmo. Estou lendo sozinha no meu quarto.

— Legal.

— É. E você, como está?

— Bem. Você não quer ir comigo a uma festa no sábado? Amanhã? Vai ser na casa do meu irmão.

— Parece bacana.

— Vamos nos encontrar primeiro aqui em casa. Depois vamos pegar um táxi até lá. Ele mora em Solheimsviken. O que você acha de aparecer por
volta das sete?

— Pode ser.

— O Jon Olav também vem, então deve ter pelo menos mais um conhecido seu.

— Esse seu primo costuma estar sempre por toda parte?

— Dá para dizer que sim…

Ela riu um pouco, e então ficamos em silêncio.

— Combinado então? — eu disse. — Sete horas aqui em casa amanhã?

— Combinado. Vou levar o bom humor e o espírito alegre de sempre!

— Que bom! — eu disse. — Nos vemos amanhã, então. Tchau!

— Tchau!

 

Na manhã seguinte limpei todo o estúdio, troquei as roupas de cama, lavei minhas roupas e as pendurei no varal que ficava no porão, eu queria que tudo estivesse em ordem caso Ingvild acabasse indo comigo para casa ao final da festa. Estava claro que alguma coisa teria que acontecer. Minha passividade e minha hesitação na primeira vez eram compreensíveis e não tinham sido decisivas; o segundo encontro tinha sido diferente, porque aconteceu durante o dia e nos deu a oportunidade de nos conhecer melhor, mas naquele terceiro encontro em Bergen eu precisaria deixar as minhas intenções claras e partir para o ataque, senão Ingvild escaparia por entre os meus dedos. Eu não poderia conquistá-la simplesmente conversando, seria preciso tomar a iniciativa de um beijo, um abraço, e depois, talvez quando saíssemos para dar uma volta pelas ruas próximas ao apartamento de Yngve, uma pergunta, você não quer dormir lá em casa?

Era um pensamento assustador, mas ao mesmo tempo necessário, não havia como escapar daquilo, ou então eu não conseguiria nada. Não era um plano para ser seguido à risca, eu teria que improvisar ao longo do caminho, fazer a leitura das situações, entender o que ela queria, onde ela estava, mas não havia como deixar de agir, isso era o mais importante, e então Ingvild poderia impedir meus avanços se não quisesse ou achasse que era cedo demais.

Mas se ela aceitasse ir comigo para casa eu seria obrigado a falar sobre a minha situação. Eu não poderia sofrer a humilhação de tentar esconder que eu gozava rápido demais, como em tantas outras vezes, eu precisaria falar a respeito, tratar o assunto como se fosse um detalhe de pouca importância, uma coisa simples e prosaica, um problema contornável. Na única vez em que eu realmente havia transado com uma garota, em uma barraca no festival de Roskilde daquele mesmo verão, quanto mais a gente transava melhor eu me saía, então eu sabia que era possível. Mas eu não me importava nem um pouco com aquela garota, não daquele jeito, ela não significava nada para mim além daquilo, mas com Ingvild era diferente, com ela eu tinha tudo a perder, ela era a única garota que eu desejava namorar, e as coisas não podiam dar errado por causa do meu problema.

Outra coisa que eu sabia era que beber ajudava, mas ao mesmo tempo eu podia acabar bêbado demais, e nesse caso Ingvild talvez pensasse que aquilo era a única coisa que eu queria dela. Mas não era nada disso! Nada poderia estar mais longe da verdade.

* * *

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